A base trinitária da família cristocêntrica

Joel Oliveira
Crist’óCentro

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Depois da breve reflexão que fizemos sobre a natureza da Igreja, passemos já a examinar o primeiro capítulo de Efésios, em especial os versículos 3 a 14 — uma passagem que é uma única frase no grego, que deixa perplexos os estudiosos, e a que Eugene Peterson chama uma “maravilhosa e abundante catarata de poesia”. Esta passagem expõe de uma forma magistral o plano de Deus, e mostra como esse plano é trinitário e cristocêntrico. Vamos meditar sobre o texto e ver o que isso significa.

3 Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus, que nos encheu de bênçãos espirituais em Cristo, nos céus. 4 Pois, antes de o mundo existir, ele escolheu-nos para juntamente com Cristo sermos santos e irrepreensíveis e vivermos diante dele em amor. 5 Ele destinou-nos para sermos seus filhos por meio de Cristo, conforme era seu desejo e vontade, 6 para louvor da sua graça gloriosa que ele gratuitamente nos concedeu no seu amado Filho. 7 Pelo sacrifício da sua morte fomos libertados e recebemos o perdão dos pecados, em virtude das riquezas da sua graça, 8 que ele derramou abundantemente sobre nós com toda a sabedoria e entendimento. 9 Deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade e o plano generoso que tinha determinado realizar por meio de Cristo. 10 Esse plano consiste em levar o Universo à sua realização total, reunindo todas as coisas em submissão a Cristo, tanto nos Céus como na Terra. 11 Foi também em Cristo que fomos escolhidos para sermos herdeiros do seu reino, destinados de acordo com o plano daquele que tudo opera conforme o propósito da sua vontade. 12 Louvemos, portanto, a glória de Deus, nós que previamente já pusemos a nossa esperança em Cristo.13Foi em união com Cristo que também receberam a palavra da verdade, a boa nova da salvação. Foi também em união com Cristo que creram e foram selados com o Espírito Santo da promessa. 14 O Espírito Santo é a garantia da herança que nos está prometida e que consiste na completa libertação dos que pertencem a Deus, para louvor da sua glória.

- Efésios 1:3–14 (BPT)

Neste texto (v3) Paulo diz-nos que nós — a Igreja — fomos cheios de bênçãos espirituais (na realidade a palavra grega aqui traduzida por “encheu” é pasē que implica totalidade ou plenitude). São efetivamente todas as bênçãos espirituais, e é Deus o Pai que nos enche de todas essas bênçãos. Como Paulo diz noutra parte, tudo é nosso, e nós de Cristo. Nós, a Igreja, fomos escolhidos pelo Pai antes do mundo existir para sermos participantes de todas essas bênçãos e vivermos diante dele em santidade e amor (v4). Mas qual a forma que essas bênçãos tomam, ou melhor, em quem essas bênçãos encarnam? Todas essas bênçãos se concentram numa pessoa — Cristo. É Deus o Pai que nos enche de bênçãos espirituais e nos escolhe, mas é em Cristo que ele o faz.

Convém notar a natureza dessas bênçãos: não se trata de bênçãos materiais. Essas não as temos todas, a não ser que embarquemos na história da carochinha do pseudo-evangelho da prosperidade, que diz que em Cristo temos todas as bênçãos materiais, só ainda não “tomamos posse” delas. Se não embarcarmos em contos do vigário percebemos que estas bênçãos são de facto espirituais e têm uma natureza diferente das bênçãos materiais, terrenas e circunscritas a este mundo. Deus promete dar-nos o que precisamos a cada dia, não nos promete “todas as bênçãos materiais”. O que significa então “espirituais” neste contexto?

Não queremos aqui dizer que o que é material é mau e o que é espiritual é bom; isso seria incorrer na heresia histórica do gnosticismo, que conduz ao desprezo pelo corpo, pela criação de Deus, e pela própria humanidade de Jesus, que se fez carne. Mas queremos dizer que este mundo, e tudo o que nele há, vai passar; que ninguém leva tesouros terrenos para a eternidade depois de sair deste mundo; e que Deus é espírito, e só o Espírito dá vida. As bênçãos espirituais são as coisas eternas, ou seja, as coisas que se não vêem, porque as que se vêem são temporais, passam e desaparecem. Não é que estas bençãos espirituais tornem mau ou desnecessário o mundo material; pelo contrário, são estas bênçãos espirituais que sustentam e dão sentido ao mundo material. Mas não vamos trocar a ordem dos fatores: só as coisas espirituais são eternas, e nada do que é material existe sem elas. Por outras palavras, Deus não precisa da criação, mas a criação precisa impreterivelmente de Deus, porque é Cristo que dá consistência a todas as coisas.

Não é este o ponto principal que queremos focar aqui, mas não vamos deixar de notar algo importante para nós enquanto família/igreja-local: o que nos é prometido não é abundância material. É normal que muitas igrejas locais sejam famílias de escassos recursos, que se debatem com dificuldades materiais, ou que pelo menos não têm acesso a grandes fontes de rendimento. Não estamos a dizer que uma igreja que dispõe de recursos e vive materialmente confortável é necessariamente uma igreja com falta de saúde espiritual — não idolatremos a pobreza. Mas se acontecer as igrejas passarem dificuldades ou não obtiverem instantaneamente tudo aquilo de que necessitam, isso não é motivo para duvidar da fidelidade de Deus. “No mundo tereis aflições”, disse Jesus; “sei viver com fartura e com escassez”, disse Paulo. E com abundância ou escassez, o chamado é o mesmo: mostrem-se ricos em generosidade, porque Deus usa as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes.

São então precisamente essas bençãos espirituais que Deus Pai nos traz em Cristo, as bênçãos que fluem da pena de Paulo nos versículos seguintes. Toda esta plenitude de bênçãos, todas as “riquezas da sua graça” (v7), são derramadas abundantemente sobre nós (v8) “em Cristo”, uma expressão que Paulo repete até à exaustão (vv. 3,4,6,7,9,10,11,12,13) — ou “por meio de Cristo” (v5). Não há que enganar: Cristo, o Filho, é o centro do grande e misterioso plano eterno de Deus. Pelo sacrifício da sua morte fomos perdoados e libertos do pecado e da morte, e nele conhecemos o plano generoso de Deus (v9) que por meio de Cristo se cumpre, e que leva o Universo à sua realização total (v10): todas as coisas sujeitas a ele, rendidas aos pés de Cristo. Para quê, com que fim? Para louvor da glória de Deus Pai, expressão repetida como um refrão nos versículos 6, 12 e 14, e que mostra qual a finalidade de todas as obras de Deus e de tudo aquilo o que ele nos criou e redimiu para sermos. Fomos criados e redimidos em Cristo para glória de Deus, e como diz o Catecismo de Westminster, essa é a finalidade principal do ser humano. O objetivo final do plano eterno de Deus não somos nós nem a nossa salvação, mas o louvor da sua glória.

Resumindo o que aprendemos até aqui: já vimos que o Pai derrama sobre nós todas as bênçãos espirituais em Cristo, o seu Filho, e que escolheu a Igreja antes do mundo existir para, em união com o Filho, receber todas as bençãos espirituais que há nele: ser uma família de filhos salvos, participantes do plano eterno do Pai e herdeiros do Seu Reino. O que se segue? O selo de garantia de que a libertação continua a ser real e completa, e de que Deus estará connosco até ao fim dos tempos, até à consumação dos séculos: o Espírito Santo prometido por Cristo e enviado pelo Pai e pelo Filho.

Jesus prometeu que ele não deixaria os seus discípulos sós, mas que enviaria o Espírito Santo para guiar os mesmos discípulos na verdade que é Cristo, manifestando a glória do Pai através do Filho. Mais: ele não veio somente para guiar os discípulos de Jesus, mas para convencer o mundo da realidade do pecado, da justiça e do julgamento de Deus. A palavra grega que Jesus usa para caracterizar o Espírito Santo e mostrar qual é o seu papel é Parakletos, que é por vezes traduzido por Consolador, outras por Defensor, e outras por Advogado. Parakletos é tudo isso e mais. A verdade é que nenhuma dessas palavras chega para igualar o rico significado de Parakletos: aquele que vem guiar, apoiar, auxiliar, defender, ser advogado, um ajudador, um intercessor. Ele foi prometido por Jesus e enviado no dia de Pentecostes, 50 dias depois da Páscoa e 10 dias depois da ascensão de Jesus. Para os judeus esse evento era a celebração da entrega a Moisés dos 10 mandamentos por Deus no monte Sinai. Mas naquele Pentecostes veio quem era maior do que a lei de Moisés, o Espírito de Cristo — porque a letra da lei mata, mas o Espírito Santo vem inundar de vida todos os que o queiram receber.

Temos aqui então reunidas todas as pessoas que fundamentam e servem de modelo à família de Deus, que é a Igreja de Cristo e cada família/igreja-local: três pessoas que são uma família, a verdadeira Sagrada Família, a família perfeita, a Trindade. Sem esta família não haveria qualquer hipótese da Igreja ser Igreja: o Pai envia o Filho que vem cumprir e revelar o plano eterno do Pai à humanidade, oferecendo, pela sua morte e ressurreição, vida eterna a todo aquele que crê — que se torna também filho. Mas para que todo o mundo possa ter a oportunidade de receber o Filho, o Pai e o Filho enviam o Espírito Santo, que enche a Igreja de poder para testemunhar de Cristo.

Deus, a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, é uma família perfeita que vive eternamente em amor, porque Deus é amor. Atuam em perfeita harmonia, cada um diferente dos outros, mas sendo perfeitamente um só, o perfeito exemplo de unidade na diversidade. Onde mais poderíamos ir buscar o modelo para a nossa vida enquanto família a não ser à Família que nos formou e que nos sustenta? A Igreja não pode ser outra coisa que não uma família trinitária, uma família em que Cristo é o centro, porque é isso que o Espírito Santo que Deus enviou para estar connosco todos os dias faz: glorificar Cristo para louvor de Deus Pai.

Ser uma família trinitária é então caminhar na unidade diversa da Trindade, e uma família trinitária será necessariamente uma família cristocêntrica, porque Cristo é o centro da Trindade. E Cristo ser o centro significa que Cristo e o seu Evangelho, com o pecado, a justiça e o juízo por um lado, e com a graça, o perdão e o amor sacrificial de Deus por outro lado, é o próprio caminho.

Como a Trindade somos chamados para a perfeita unidade na diversidade. Somos pessoas diferentes, temos dons diferentes, funções diferentes na família, mas somos todos chamados a, pela graça de Deus Pai, estarmos unidos em Cristo, na unidade do Espírito Santo. Com Cristo e o Evangelho no centro, sacrificaremos tudo por essa unidade, sendo como Cristo obedientes até à morte, levando a nossa cruz e dando a vida pela família e pelos que ainda dela não fazem parte, como Cristo deu a vida por nós e pelo mundo.

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