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A Reforma Protestante e o Catolicismo Romano

Joel Oliveira
Crist’óCentro
19 min readOct 31, 2020

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Nesta altura do ano costumamos pensar por que aconteceu a Reforma e se ainda faz sentido nos dias de hoje, passados 503 anos, falar em Reforma Protestante. E foi há precisamente esse tempo que um monge agostiniano católico romano chamado Martinho Lutero teve uma revelação sobre aquilo que na Bíblia significa justificação (a forma como o homem se torna justo diante de Deus).

Ele percebeu que não eram as obras (em particular as indulgências, que era a prática católica romana de ofertar dinheiro para comprar anos fora do purgatório) o meio de salvação, mas somente a fé em Cristo, que pela graça de Deus se ofereceu em sacrifício pelo pecado. É isso que as Escrituras ensinam, e Lutero defendeu que as Escrituras são a única fonte de autoridade em matéria do caráter de Deus e da sua vontade para a humanidade.

Por causa disso foi expulso da Igreja: mas não nos podemos esquecer que Lutero era católico romano, e queria permanecer católico romano — no entanto, a Igreja não estava disposta a dar à Palavra de Deus a primazia. Então, ao mesmo tempo que celebramos o movimento da Reforma, choramos porque preferíamos que este movimento não tivesse tido de acontecer e que pudéssemos ser todos uma única Igreja, fundamentados unicamente no Cristo revelado na Palavra de Deus. Mas infelizmente essa não é a realidade.

Nas suas 95 teses contra as indulgências, que pregou à porta de uma igreja em Vitemberga, Martinho Lutero insurge-se contra uma prática que começou no século X, e que se mantém até hoje, 10 séculos depois.

De facto, todos os últimos papas promoveram indulgências e o último exemplo foi o Papa Francisco ter anunciado um ano sagrado especial em 2016, o ano do jubileu dedicado ao tema da Misericórdia, onde apresentava uma variedade de maneiras pelas quais os peregrinos receberiam indulgências. Francisco decretou que durante o ano do jubileu, não só os peregrinos que atravessam a porta sagrada especial na Basílica de São Pedro ou outras igrejas romanas obteriam uma indulgência. Mas pela primeira vez, cada diocese ao redor do mundo também teria uma porta sagrada numa ou mais igrejas para facilitar as pessoas que não podem viajar para obter uma indulgência.

No essencial, as indulgências compram tempo parcial ou total fora do purgatório e nas suas 95 teses, Martinho Lutero faz uma pergunta interessante: se o Papa pode esvaziar o purgatório, porque não faz por amor. E a partir das indulgências, Lutero coloca em causa toda a doutrina católica sobre a salvação, que Lutero defendeu, pela Bíblia, que era somente pela fé e não pelas obras.

A pergunta impõe-se: será que a reforma ainda é necessária e atual?

Já vimos que aquilo que deu origem ao movimento da Reforma Protestante, as indulgências, continua a ser feito hoje, sem nenhuma alteração doutrinária embora com algumas alterações práticas. Ms muita gente acha que falar de reforma protestante já não faz sentido porque a Igreja Católica Apostólica Romana (doravante designada por ICAR) está diferente e que devemos estar unidos e ignorar as diferenças doutrinárias.

Podemos argumentar que esta convicção tem pelo menos em parte origem na ideia de que as doutrinas não importam muito, que a teologia não importa muito, e que o principal é a forma como vivemos.

Mas a ideia de que as ideias doutrinárias não importam muito é em si uma doutrina, e perigosa, porque as ideias têm consequências — e más ideias têm consequências graves. Se eu disser ao meu filho que ele pode atravessar a rua sem olhar para os dois lados ou fora da passadeira, e ele adotar essa convicção, que consequências isso poderá ter? Não serão boas de certeza.

A tese neste artigo é que não há maneira de entender a Reforma Protestante e a sua relevância sem entender o que é na realidade a ICAR e ter consciência dos seus fundamentos. Será que entendemos a profundidade das diferenças, ou estamos só focados naquilo que parece semelhante? A utilização da expressão “parece semelhante” é propositada, porque muitas vezes podemos usar as mesmas palavras e querer dizer coisas completamente diferentes e é isso que acontece com muitos dos termos que partilhamos com a teologia católica romana— embora inegavelmente tenhamos também muito em comum.

Mas por altura da celebração do aniversário da Reforma (e não só) é muito útil e importante refletir um pouco sobre o que é na realidade a ICAR: até porque, enquanto portugueses, vivemos num país de matriz católica romana, e estamos rodeados de pessoas que se identificam como católicos romanos — e quão importante é para pessoas que querem ter uma presença significativa no mundo conhecerem a identidade das pessoas que os rodeiam? Parece extremamente importante, ainda mais quando essas pessoas que devem ter uma presença significativa no mundo são chamadas para ser sal e luz no mundo, apresentando a Boa Notícia de Jesus a TODOS.

Mas esta reflexão é também proveitosa para que os protestantes reflitam sobre a sua própria identidade: ao conhecermos essa realidade, ficamos mais conscientes do porquê de não sermos católicos romanos. Esta é a pergunta que muitos fazem hoje (explicitamente ou nas entrelinhas): Mas porque é que afinal nós não somos católicos romanos?

Será que só somos protestantes por acaso ou por uma questão de estética, ou ainda por pertencermos a igrejas que têm com o catolicismo romano pequenas diferenças denominacionais? Cada vez mais evangélicos parecem pensar que sim.

Há uma ressalva importante antes de entrarmos numa reflexão sobre a natureza da ICAR e sobre as suas diferenças com a fé protestante: há muitos católicos romanos que pela graça de Deus têm uma fé genuína, ainda que possa conter erros. Mas é importante também dizer que mesmo esses, sendo católicos de facto, e muitas vezes vivendo e promovendo uma fé bíblica, estão dentro de um sistema que na sua essência e no seu todo, não promove de forma alguma uma fé bíblica.

Feitas estas ressalvas, vamos então ver de uma forma muito superficial o que é o catolicismo e quais são essencialmente as diferenças que nos separam enquanto protestantes. Vamos deixar muita coisa de fora, e haveria muito mais a dizer sobre cada uma das coisas que mencionarmos. Mas se este for o caso de partida para uma reflexão mais profunda, o objetivo deste artigo estará atingido.

Vamos começar a nossa reflexão pensando na ICAR como um edifício que tem dois alicerces: o alicerce romano e o alicerce católico.

1) O alicerce romano: a igreja católica romana é um estado político que tem origem num império, o império romano.

E a ICAR reproduz a estrutura hierárquica do império romano, com o Papa no topo em lugar do imperador e os leigos na base, em lugar dos escravos — tendo no meio os cardeais que são o equivalente ao Senado imperial, e os sacerdotes, que são o equivalente aos cidadãos romanos.

A ICAR nasceu então no e do império romano: no século IV, o imperador Constantino tornou a religião cristã a religião oficial do império romano, e essa mistura entre a fé e o estado nunca se desfez no sistema católico romano.

Historicamente a ICAR possuiu territórios e os papas foram governantes e muitas vezes guerreiros que combateram para defender esses territórios. E hoje a ICAR é um estado soberano, o Vaticano, com uma guarda estatal, embaixadores, e uma administração política típica de qualquer país.

Esta mistura entre a política e a religião na ICAR está na realidade no ADN da ICAR, e está tão sólida hoje como sempre esteve (de facto, está até mais forte do que em muitos momentos da história).

E essa mistura prende a ICAR ao poder político, e mantém uma estrutura política extremamente sólida que se mantém há 16 séculos. O Papa, por exemplo, tem muito poder, mas tem também uma grande estrutura hierárquica que governa toda a igreja, começando pela Cúria (o órgão administrativo da Santa Sé, constituído pelas autoridades que coordenam e organizam o funcionamento da ICAR), e contendo muitos movimentos dentro da estrutura que lhe conferem bastante diversidade, embora nunca deixando de estar integrados na estrutura.

Como em todas as estruturas políticas do mundo, jogos de poder, interesses, manipulação, esquemas, e corrupção, são parte integrante dessa estrutura. Isso acontece em todas as organizações humanas, e a ICAR não é excepção.

Por exemplo, como é que ao fim de 50 anos se acusam 3000 clérigos de abuso sexual? Mais uma vez, abusos e atrocidades acontecem em qualquer estrutura humana. Mas aqui estamos a falar de uma estrutura religiosa que se diz cristã, e que alberga durante décadas, em silêncio, milhares de abusadores em todas as partes do mundo.

Isso acontece porque o abuso fica abafado numa estrutura fechada, e como diz Margaret Smith, investigadora no Instituto John Jay de Justiça Criminal, “só pode ser alterado por uma mudança de regime, uma mudança no topo, porque o modelo do Vaticano é de uma abordagem autoritária do catolicismo, e os padres simplesmente absorvem essa abordagem."

Na estrutura política da ICAR, o problema não é uma nódoa no tecido, é o próprio tecido; o problema não é um teto com infiltrações, é o alicerce do edifício! Por alguma razão Jesus disse que o seu Reino não era deste mundo, e rejeitou qualquer compromisso com as estruturas políticas do seu tempo.

Haveria muito mais a dizer sobre este primeiro alicerce, mas vamos passar para o segundo.

2) O alicerce religioso: a igreja católica romana não é só um estado soberano e político; é um sistema religioso, com um alicerce teológico, e que se diz cristão.
E deste alicerce espiritual (que está misturado com o alicerce político como água se mistura com o cimento para fazer betão), saem dois pilares que servem de base para todas as doutrinas católicas.

Esta ideia dos pilares é proposta por Leonardo de Chirico, teólogo e estudioso do catolicismo romano, e antes de entrarmos na reflexão sobre esse primeiro pilar (ou axioma, que é a palavra usada por de Chirico), vamos ler uma passagem da Bíblia que nos vai acompanhar durante esse breve estudo.

Efésios 2:1–10
1 Outrora estavam mortos, por causa dos vossos delitos e pecados. 2O espírito deste mundo levava-vos a viverem dessa maneira. Andavam sujeitos ao chefe das forças do mal, àquele que ainda agora atua nos que são desobedientes a Deus. 3 Todos nós estávamos na mesma condição, dominados pelos nossos maus desejos. Obedecíamos a esses maus desejos e pensamentos, e estávamos naturalmente destinados, como os outros, a receber o castigo de Deus.
4 Mas Deus, que é rico em misericórdia, mostrou por nós um grande amor. 5Estando nós mortos, por causa dos nossos delitos, ele deu-nos a vida juntamente com Cristo. É pela sua graça que estão salvos. 6 Pois Deus ressuscitou-nos juntamente com Cristo Jesus e com ele nos fez tomar parte no seu reino celestial. 7 Desta maneira, quis mostrar para sempre a todos os que hão de existir a imensa riqueza dos favores que nos concedeu por meio de Jesus Cristo.
8 Porque é pela graça que estão salvos, mediante a fé. E isto não é mérito vosso, é dom de Deus. 9 Não vem das obras para que ninguém se glorie. 10Pois somos obra das suas mãos, criados em Cristo Jesus para vivermos na prática das boas obras, as quais de antemão Deus preparou para nós.

2.1 O primeiro pilar é chamado por de Chirico a interdependência natureza-graça.

A natureza é a criação e a graça a ação de Deus, e as duas dependem uma da outra. No sistema teológico católico romano, a natureza é vista como sendo um canal de graça, e a graça deve elevar ou aperfeiçoar a natureza. Por exemplo, a água (no campo da natureza) é capaz de receber e tornar-se um canal de graça quando, consagrada pela ICAR, é usada no sacramento do batismo, que confere graça para a salvação a quem o recebe. O pressuposto aqui é que materiais da natureza têm poder espiritual e podem funcionar como canais de graça.

Isto é notório tanto em práticas católicas sacramentais como em práticas que envolvem veneração de objetos ou lugares materiais (objetos como relíquias ou estátuas de santos, e lugares como destinos de peregrinações) como também influenciam doutrinas chave da fé cristã.

É visível nos sacramentos, e a título de exemplo podemos referir o sacramento da penitência, como falámos a propósito das indulgências, que podem ser obtidas passando por uma porta; outro exemplo é a água do batismo, que é “benta”, sem pecado, conferindo graça; ou então a hóstia e o vinho da eucaristia, que são vistos como sendo literalmente o corpo e o sangue de Cristo, não sendo apenas símbolos, mas elementos que contêm a plenitude de Cristo.

Esta visão dá também base e está na origem de doutrinas chave no catolicismo romano. Vamos ver algumas delas:

A visão do homem: segundo o catolicismo, o homem, no seu estado natural, mantém a capacidade de colaborar com Deus; diz o Catecismo (CCC 3):

A partir da criação isto é do mundo e da pessoa humana, o homem pode só pela razão conhecer com certeza a Deus como origem a fim do universo e como Sumo bem, verdade e beleza infinita.

Mas o que lemos anteriormente na passagem de Efésios?

Efésios 2:1-3
1Outrora estavam mortos, por causa dos vossos delitos e pecados. 2O espírito deste mundo levava-vos a viverem dessa maneira. Andavam sujeitos ao chefe das forças do mal, àquele que ainda agora atua nos que são desobedientes a Deus. 3Todos nós estávamos na mesma condição, dominados pelos nossos maus desejos. Obedecíamos a esses maus desejos e pensamentos, e estávamos naturalmente destinados, como os outros, a receber o castigo de Deus.

Esta passagem deixa evidente que, ao contrário do que defende a ICAR, o homem não pode conhecer Deus pela sua razão, estando completamente dominado pelos seus maus desejos e soterrado debaixo dos teus delitos e pecados.

Esta visão do homem está relacionada com outra doutrina chave:

A visão do pecado: segundo o catolicismo Romano, o pecado não impede que a natureza humana retenha a capacidade para cooperar com a graça (como no caso de ateus ou outras pessoas de "boa vontade", que, mesmo não crendo no Deus da Bíblia, são considerados capazes de atingir o favor de Deus através das suas boas obras.

Os muçulmanos por exemplo, que não crêem em Cristo, são referidos no catecismo como pessoas que "connosco adoram o verdadeiro Deus" (ccc 841)

Mas o que lemos em Efésios? Que só há salvação em Cristo.

Efésios 2:4-7
4Mas Deus, que é rico em misericórdia, mostrou por nós um grande amor. 5Estando nós mortos, por causa dos nossos delitos, ele deu-nos a vida juntamente com Cristo. É pela sua graça que estão salvos. 6Pois Deus ressuscitou-nos juntamente com Cristo Jesus e com ele nos fez tomar parte no seu reino celestial. 7Desta maneira, quis mostrar para sempre a todos os que hão de existir a imensa riqueza dos favores que nos concedeu por meio de Jesus Cristo.

Não pode haver salvação fora de Cristo, muito menos em quem nega abertamente o senhorio de Cristo. Mas na doutrina católica romana é possível, porque tanto ateus como pessoas de boa vontade de outras religiões (não é claro o que significa “boa vontade”) se podem ligar a Deus através da sua vida natural e convicções da consciência.

Como disse o Papa Francisco já várias vezes, todos são por natureza filhos de Deus — mas lê-se claramente em Efésios que só juntamente com Cristo podemos ter vida (v5) e no Evangelho de João a Escritura é clara que só quem recebe Jesus recebe o poder de ser feito filho de Deus (João 1:12). No entanto, no catolicismo romano, a natureza humana não está completamente estragada pelo pecado, e pode conhecer Deus pela razão e salvar-se por uma vida piedosa.

Esta visão do homem e do pecado, por sua vez, influenciam diretamente a visão do catolicismo Romano sobre outra doutrina chave: a doutrina da salvação.

A visão da salvação: segundo o catecismo, a salvação é totalmente da iniciativa de Deus mas a manutenção da salvação, a Santificação, e a obtenção da vida eterna, são fruto de uma colaboração entre o homem e Deus.

Vejamos o que diz o catecismo sobre este tema (CCC 2010):

Ninguém pode merecer a graça primeira, que está na origem da conversão, do perdão e da justificação. Sob a moção do Espírito Santo e da caridade, podemos, depois, merecer para nós mesmos e para outros, as graças úteis para a santificação e para o aumento da graça e da caridade, bem como para a obtenção da vida eterna. Os próprios bens temporais, tais como a saúde e a amizade, podem ser merecidos segundo a sabedoria de Deus.

Em suma, no catolicismo romano, o homem pode merecer as graças úteis para a santificação e para a obtenção da vida eterna.

Voltemos à passagem de Efésios:

Efésios 2:8-10
8Porque é pela graça que estão salvos, mediante a fé. E isto não é mérito vosso, é dom de Deus. 9Não vem das obras para que ninguém se glorie. 10Pois somos obra das suas mãos, criados em Cristo Jesus para vivermos na prática das boas obras, as quais de antemão Deus preparou para nós.

Não há qualquer mérito (v8), nem antes da salvação nem depois da salvação, porque a salvação é somente pela graça de Deus, e ninguém tem do que se gloriar (v9).

Somos obra das mãos de Deus e criados em Cristo para depois de salvos fazermos obras - não para merecermos o que quer que seja, mas porque Deus as preparou para nós.

Que conclusão podemos então tirar sobre o pilar católico romano da interdependência natureza-graça?

Vimos que a natureza não pode fazer nada por si só para conduzir à graça — a criação está demasiado corrompida. Só Deus pode sobrenaturalmente conduzir à graça, e não é das coisas naturais que tiramos poder, mas das coisas espirituais - e é a fé que nos liga ao dom de Deus de salvação em Cristo.

Podíamos falar de muitas outras questões doutrinárias que vêm desta ideia da interdependência natureza-graça, mas vamos passar ao segundo pilar que vem do alicerce teológico da ICAR: a interconexão Cristo-Igreja.

Este pilar está ligado ao primeiro, porque, no sistema católico romano, alguém tem de fazer a mediação entre a natureza e a graça.

Em primeiro lugar, Cristo vem fazer essa mediação, mas depois de Cristo deixar de estar fisicamente no mundo, essa mediação tem de ser feita de outra forma. E no sistema católico romano, quem faz essa mediação é a Igreja, que é uma extensão de Cristo na terra.

É preciso entender bem isto e as respetivas implicações: no sistema católico romano, a Igreja não é uma representante de Cristo na terra; a Igreja é o próprio Cristo na terra. A Igreja é então uma mediadora da graça divina, tão importante como Cristo, porque é o seu verdadeiro corpo (a expressão usada é altera persona Christi (que significa outra - ou uma segunda - pessoa de Cristo).

Por outro lado, o entendimento protestante defende que quando Paulo diz que a Igreja é o corpo de Cristo e Cristo é a cabeça, não está a dizer que a igreja e Cristo têm a mesma importância.

Atentemos para um texto que nos vai auxiliar na nossa reflexão sobre esta ideia da interconexão Cristo-Igreja:

Colossenses 1:14-20
14 O Filho alcançou-nos a redenção e o perdão dos nossos pecados.
15 Ele é a imagem do Deus invisível:
nascido do Pai antes da criação do mundo.
16 Foi por ele que Deus criou tudo o que existe no Céu e na Terra,
o que se vê e o que não se vê,
as forças espirituais, os domínios, as autoridades e os poderes.
Foi por ele e para ele que Deus criou tudo.
17 Já existia antes de tudo
e é ele que dá consistência a tudo o que existe.
18 Ele é a cabeça do corpo que é a igreja.
Ele é a origem, é o primeiro dos ressuscitados,
de modo que tem o primeiro lugar em tudo.
19 Porque Deus achou por bem estar totalmente presente no seu Filho,
20 e também, por meio dele, reconciliar consigo mesmo tudo o que existe na Terra e no Céu,
estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz.

É verdade que a Igreja é o corpo de Cristo, e é verdade que Cristo deu à igreja a sua autoridade e o seu poder; mas como lemos claramente nesta passagem, Cristo é sempre a cabeça, o primeiro em tudo (v16-18). Temos de concluir então a Igreja não pode ter a mesma autoridade de Cristo, mas deverá antes submeter-se completamente a Cristo.

No entanto, no sistema católico romano, a interpretação que é feita desta passagem tem como consequência prática um igualar da igreja ao próprio Cristo.

Vamos falar de três consequências doutrinárias desta ideia da interconexão Cristo — Igreja (além da consequência mais óbvia e imediata que coloca Cristo no mesmo patamar de autoridade e poder da igreja e que por isso diminui Cristo).

A visão das Escrituras: como a ICAR acredita que é Cristo na terra, vê-se com exatamente a mesma autoridade de Cristo, por isso a ICAR vê-se com autoridade para definir o canon das Escrituras

No protestantismo, vemos as Escrituras como algo a que nos devemos submeter e que recebemos de Deus, não como aquilo que a Igreja construiu. Além disso, as Escrituras do Velho Testamento já existiam antes da igreja, e o Novo Testamento foi escrito em cima e a partir do Velho, não “inventado” pela Igreja.

Mas a ICAR vê não apenas as Escrituras como algo que a Igreja determinou, mas vê-se a si mesma como tendo a mesma autoridade das Escrituras: através da Tradição (os ensinamentos da igreja que são passados de geração em geração) e o Magistério da Igreja (o ministério que ensina e promulga a Tradição, tornando-a doutrina oficial da ICAR).

Por causa desta visão das Escrituras no catolicismo romano, como sendo determinadas pela Igreja e estando no mesmo patamar de autoridade da Tradição e do Magistério, podemos ter:

  • dogmas como o dogma da infalibilidade de um homem, o Papa: quando fala ex-cathedra (“da cadeira de Pedro”), a palavra do Papa é recebida como tendo o mesmo peso das Escrituras;
  • ministérios como o sacerdócio — os sacerdotes, enquanto substitutos de Cristo (“fazendo as vezes de Cristo” na liturgia), tornam-se mediadores de graça entre os homens e Deus;
  • doutrinas sem qualquer base bíblica, como a da Imaculada Conceção de Maria, que é uma invenção pura da ICAR, e que se tornou dogma ou doutrina oficial — aliás, sobre Maria, o Catecismo designa-a sem reservas como mediadora: “Portanto, a Santíssima Virgem é invocada na Igreja sob os títulos de Advogada, Ajudante, Benfeitora e Mediadora.” (CCC 969)

A visão do Espírito Santo: se a Igreja é a presença total de Cristo na terra, onde fica o Espírito Santo?

Se Cristo está totalmente presente no mundo através da ICAR, como esta defende (a interconexão Cristo-Igreja), o Espírito Santo parece ser relegado para um papel acessório, ou pelo menos indefinido em relação a Cristo. Mas pelas Escrituras é bastante óbvio que para Jesus, o papel do Espírito Santo era determinante, já que este iria tomar o seu lugar na terra depois de ascender aos céus.

Em João 16:7 lemos: “Mas fiquem a saber que para vosso bem é melhor que eu vá. Se eu não for, o Defensor não virá até vós, mas se eu for, eu vo-lo enviarei.”.

É o Espírito Santo então a presença total de Cristo na terra, e não a Igreja, que apesar de ter a importante vocação de ser o corpo de Cristo e de ser a representação de Cristo na terra, não pode tomar o lugar de soberania e autoridade que só ao Espírito Santo pertence.

A visão da fé: a visão católica romana da fé tem muitas semelhanças com a fé segundo o protestantismo, ou seja: acontece por uma adesão pessoal e livre (não pode ser coagida), é uma disposição de confiança, está ligada ao intelecto, é necessária para a salvação, e é dirigida a Deus como o seu objeto e aquele a quem os crentes estão unidos num relacionamento pessoal (CCC 93-100).
Mas por causa da interconexão Cristo-Igreja, o homem no sistema católico romano precisa da Igreja para ter fé, ou seja, a fé não vem pelo ouvir a Palavra, mas por estar em comunhão com a Igreja.

Isto tem implicações sérias ao nível do que é pedido dos crentes: não primariamente que leiam a palavra e se convertam, mas que estejam ligados à igreja, que trata de os nutrir de fé.

Como diz o catecismo, “É a Igreja que primeiro crê, e assim suporta, nutre e sustenta a minha fé.” (CCC 168). E em nenhum lugar a natureza da fé no sistema católico romano é mais evidente do que no sacramento do batismo.

À criança que está a ser batizada, a Igreja concede fé. Ao adulto que está pronto para ser batizado, o padre coloca a seguinte pergunta: "O que pede da Igreja de Deus?" A resposta certa para a ICAR? Fé.

Que conclusões podemos tirar desta reflexão? Não podemos negar que temos muitas coisas em comum, mas vemos que até as coisas que temos em comum têm bases diferentes e traduzem-se numa fé diferente. Porque a fé cristã baseia-se num conhecimento e num pensamento correto sobre Jesus: o conhecimento de que ele é o único e verdadeiro Deus, o único Senhor e Salvador da humanidade, tendo a primazia sobre todas as coisas.

É verdade que tanto protestantes como católicos romanos crêem que Jesus é o Senhor e Salvador do mundo, o Filho de Deus; mas a ICAR, quando fala de Jesus, fala de um filho de Deus que está no mesmo patamar de autoridade que a sua Igreja, tirando-lhe de facto a primazia. Substitui-se a Jesus como único mediador da graça de Deus, e coloca-se numa posição de depositária da fé, quando a fé na realidade vem pelo ouvir a Palavra de Deus (Romanos 10:17)— as Escrituras, afirmam então sobre si mesmas que são a única fonte de revelação objetiva sobre quem realmente é Jesus e sobre como obter a salvação pela fé (I Timóteo 3:15–17).

A resposta protestante ao catolicismo romano, é, pela voz de Martinho Lutero, a seguinte:

A não ser que eu esteja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara (pois não confio nem no Papa ou em concílios por si sós, pois é bem sabido que eles frequentemente erraram e se contradisseram) sou obrigado pelas Escrituras que citei e minha consciência é prisioneira da Palavra de Deus. Não posso e não irei renegar nada, pois não é nem seguro e nem correto agir contra a consciência. Que Deus me ajude. Amém

A resposta protestante deve ser, além da Verdade da Palavra afirmada corajosamente, o amor cristão. Um amor pelos católicos romanos, que estão dentro de um edifício comprometido nos seus alicerces. Um amor humilde, que tem consciência de que está sujeito a mesma falibilidade e erros, e que se tem alguma revelação da verdade, não é por mérito próprio, mas pela graça de Deus de quem tudo vem.

Oremos pelos nossos amigos católicos romanos, que estão dentro desse edifício, e que acreditam que sair desse edifício é o mesmo que abandonarem a sua fé em Jesus. E que ainda que possam ter boas intenções, estão na generalidade longe de compreender o Evangelho bíblico, e de receber de graça a salvação que a ICAR ensina que, embora recebida de forma gratuita, deve ser operada de acordo com um sistema de mérito.

Nenhum sistema é perfeito, e as pessoas que compõem os sistemas estão sempre muito longe da perfeição; mas o sistema católico romano está corrompido nos seus dois alicerces - o alicerce político e o religioso, este último com os seus pilares teológicos que distorcem a Bíblia, contaminam toda a estrutura, e se manifestam em doutrinas que estão muito distantes do que a Bíblia ensina.

Oremos então pelos católicos romanos, que compõem 80% da população portuguesa, e cuja maioria desconhece o Evangelho e está presa a um sistema humano de religiosidade e tradição vazias.

E oremos por nós protestantes, que não estamos imunes aos erros - como os reformadores não estiveram imunes — e precisamos, tanto enquanto indivíduos, como enquanto igrejas e organizações, de estar constantemente num processo de Reforma.

Precisamos acima de tudo de lembrar que só temos uma hipótese de sobreviver espiritualmente: alicerçarmo-nos somente em Cristo, revelado de forma cabal somente nas Escrituras, sendo salvos somente pela graça de Deus, recebendo essa salvação somente por meio da fé, e dando somente a Deus glória por tudo.

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