Ideologia de género — uma análise cristã (3/3)

Joel Oliveira
Crist’óCentro
Published in
11 min readMay 23, 2019

V. A FÉ CRISTÃ E A IDEOLOGIA DE GÉNERO

Como ficou sugerido no artigo anterior desta série, a cosmovisão judaico-cristã é, por causa dos valores que lhe estão na base, o pior inimigo do neo-marxismo pós-moderno que constitui a base filosófica da Ideologia de género, e também, por inerência, da própria Ideologia de género.

O que tem então a cosmovisão cristã a dizer sobre este tema? Muito, de facto.

Vamos ver alguns dos valores cristãos que minam pela base a Ideologia de género.

a) Verdade

Examinemos uma das afirmações centrais de Jesus Cristo:

“Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” — João 14:6

Esta afirmação de Jesus expõe uma verdade absoluta que entra em colisão frontal com o pós-modernismo. Na cosmovisão judaico-cristã, a verdade não é uma construção, mas uma pessoa — a própria natureza de uma pessoa: Jesus Cristo.

Por isso, qualquer coisa que se queira afirmar como verdade, deve ser por referência a Jesus, que é a Verdade.

Ora no pós-modernismo, a existência efetiva de um referencial objetivo de verdade faz ruir toda a filosofia — daí que o cristianismo se constitui como alvo a abater.

Reparemos que apenas uma frase da Bíblia, a ser verdade, destrói toda a filosofia pós-modernista.

A verdade é um valor cristão, por alguém que declarou ser também caminho —e não apenas caminho, mas oCaminho para Deus— e vida — e não apenas vida, mas a Vida.

Jesus apresenta-se como aquele de quem flui não apenas a vida física, não apenas a vida interior, mas a Vida no seu sentido mais pleno e transcendente, aquilo que a Bíblia chama “a vida eterna”. É uma afirmação absolutamente radical, da qual o pós modernismo discorda no nível mais fundamental possível.

Ora, o que esta declaração radical faz ao pós-modernismo, faz à ideologia de género: mina a sua filosofia na base e provoca a sua implosão.

b) Unidade

Este homem, que declara não apenas dizer a verdade, mas ser a verdade, diz o seguinte com toda a objetividade:

Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher, 8 E serão os dois uma só carne: e assim já não serão dois, mas uma só carne. 9 Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. — Marcos 10:6–9

É importante frisar que o objetivo aqui não é provar que Jesus era realmente a Verdade, apenas expor a fé cristã pelo que ela é. Mas já vimos pelas evidências científicas que examinamos que é inegável que há diferenças objetivas entre os sexos, e por isso podemos dizer que pelo menos nisto, Jesus tinha razão: há humanos macho e humanos fêmea.

A questão do destino desses sexos, nesta passagem da Bíblia derruba a outra filosofia que está na base da ideologia de género, o marxismo. Porquê?

Porque em vez de dividir os sexos entre oprimidos e opressores como faz o marxismo cultural que dá origem à ideologia de género, Jesus os une num só na santidade de uma união transcendente, o matrimónio.

Homem e mulher não estão destinados a ser opressor e oprimida, mas uma só carne unida por Deus no casamento.

Contudo, não confundamos as coisas: ser um só não significa que um sexo se funde com o outro num todo indistinto; significa que, sendo quem são, macho e fêmea, sem perder a sua individualidade, unem-se em amor para serem um só diante de Deus.

A ideologia de género, com a sua polarização dos sexos entre opressores e oprimidos, trabalha precisamente no sentido contrário, promovendo uma divisão e um abismo permanente entre os sexos, à boa maneira marxista (ao mesmo tempo que o pós modernismo retira a base objetiva dos sexos e os dilui em nada).

E a prova de que no cristianismo os sexos, apesar de se tornarem um só, não perdem a sua individualidade, é os diferentes papéis que vemos serem atribuídos ao homem e à mulher.

De facto não seria honesto não falar do escândalo que representa para a ideologia de género não apenas a realidade da distinção biológica entre os sexos, não apenas o destino de união transcendente entre os sexos promovida por Deus, mas também a complementaridade e diferentes papéis entre os sexos, com destaque para o papel de liderança do homem.

b) Complementaridade dos sexos

Na carta do Apóstolo Paulo aos Efésios lemos:

Vós, mulheres, sujeitai-vos aos vossos maridos, como ao Senhor; Porque o marido é a cabeça da mulher, como, também, Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim, também, as mulheres sejam, em tudo, sujeitas aos seus maridos. Vós, maridos, amai as vossas mulheres, como, também, Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela. - Efésios 5:22–25

Vemos aqui o homem como chamado para liderar, mas para liderar em amor, como cabeça da família.

Não está aqui presente a ideia do homem como ditador e opressor, mas como aquele que assume a responsabilidade, que dá o corpo ao manifesto pela família, que se entrega pela mulher como Cristo se entregou pela igreja.

Um retrato de cada um dos sexos como objetivamente distintos, cada um com papéis diferentes, tal como Cristo e a igreja têm papéis diferentes. Uma abominação para os ativistas de género, e para a cultura ocidental em geral, com o seu neo-marxismo pós modernista — e portanto pós cristão.

Vimos a perspetiva de Jesus Cristo, enumerámos alguns dos valores que lhe estão subjacentes, e vimos como esta perspetiva e estes valores chocam de uma forma tão violenta com a ideologia de género.

E agora, como devemos nós, seguidores de Jesus, agir perante esta inegável ameaça para tudo a herança judaico-crista produziu no ocidente? Como nos envolvermos enquanto seguidores de Jesus nesta batalha cultural entre o neo-marxismo pós-moderno e a civilização cristã?

VI. OS CRISTÃOS E A IDEOLOGIA DE GÉNERO

É preciso dizer que a nossa cultura, mesmo quando se dizia cristã, e antes de ser classificada como “pós-cristã”, como é hoje, deixava muito a desejar no seu suposto cristianismo

Aliás, creio que podemos dizer com segurança que não existe nem nunca existiu uma cultura verdadeiramente cristã que fosse partilhada pelo Ocidente, como normalmente se pensa.

No entanto, desde que o império romano iniciou o processo de adotar a religião cristã como religião oficial do império no século IV d.C., passou a haver de facto uma partilha de valores de fundo que, embora muitas vezes distorcidos, saíram das Escrituras e dos ensinamentos de Cristo (como o valor inalienável da vida humana, o dever de cuidar dos doentes, dos pobres e dos excluídos, e sim, o valor da instituição do matrimónio).

Esses valores estão atualmente a ser preteridos, principalmente em favor do valor da felicidade individual, que se tornou supremo. Expressões disto são o aborto — abdicar do valor da vida em favor do bem estar individual — a eutanásia — abdicar de cuidar dos doentes em favor da conveniência de uma morte rápida — e toda a revolução sexual a que temos assistido desde os anos 60 — abdicar do valor da santidade do matrimónio e da família em favor do prazer individual.

Como reagir então a estas mudanças que ameaçam os nossos valores e até, como no caso da ideologia de género, as mentes dos nossos filhos? Muitos cristãos reagem de uma das formas menos cristãs possíveis: com medo.

a) A abordagem (não) cristã: o medo

Sobre o medo a Bíblia diz:

No amor não há medo antes o perfeito amor lança fora o medo; porque o medo envolve castigo; e quem tem medo não está aperfeiçoado no amor.
1 João 4:18

O medo referido pelo Apóstolo João no contexto desta passagem é o medo de Deus, um medo de um Deus essencialmente punitivo, ameaçador e implacável. Um medo que ignora o amor de Deus que ele provou em Cristo, ao enviar o seu próprio filho para morrer pelos pecadores.

A essência da mensagem cristã é precisamente que Jesus veio ao mundo voluntariamente, enviado por Deus, tomando o castigo que cabia, de forma justa, aos seres humanos, por causa da sua inclinação de querer usurpar o lugar de Deus e ocupar o centro do universo — um peso que claramente o homem não tem a natureza nem a estrutura para poder suportar, embora o deseje com todas as suas forças.

Jesus vem assim oferecer, pelo seu sacrifício, o perdão e a reconciliação entre Deus e o homem (Romanos 5:6–9)

O medo é então um sentimento antagónico à fé cristã, que é baseada no amor de Deus — aliás, o mesmo João diz na mesma carta que “Deus é amor” — e qual planta venenosa, ramifica-se em atitudes e comportamentos tóxicos, espalhando à volta sementes daninhas que vão sufocando cada vez mais a fé genuína.

O medo significa falta de amor, e quando se é movido pelo medo e não se é “aperfeiçoado no amor”, não se consegue amar Deus nem as pessoas, principalmente aquelas que nos fazem sentir ameaçados.

Somos chamados para amar as pessoas que se identificam como transgéneros e também somos chamados para amar os ativistas da ideologia de género — sentirmo-nos ameaçados por essas pessoas e ter medo delas ao invés de as abordar com graça e verdade equivale a não ser aperfeiçoado no amor, e não é uma atitude cristã.

É claro que, e sendo este um tema com ramificações políticas evidentes, a questão da militância política vem naturalmente para os cidadãos cristãos. E não há nada de fundamentalmente errado com cristãos terem ação política; o problema é os cristãos se deixarem absorver pela ideologia política que luta pelas causas que querem apoiar, e no processo negociarem a sua fé, comprando valores que são tudo menos valores do Evangelho.

b) Os perigos da militância política

Para lutar contra aquilo que sentem que os ameaça, muitas vezes os cristãos aliam-se sem condições a pessoas do outro lado da barricada, tornando-se indistinguíveis delas.

Isso aconteceu recentemente no Brasil, na luta entre Bolsonaro e a esquerda (onde denominações inteiras se colaram não apenas aos valores, mas aos partidos e “pacotes” ideológicos); aconteceu também nos EUA, na luta entre Donald Trump e Hillary Clinton (sendo que a direita americana já é, para a maior parte das pessoas, indistinguível do evangelicanismo); e acontece sempre que os cristãos sucumbem ao medo e perdem a capacidade de amar.

Não estamos a fazer juízos relativamente às personalidades políticas referidas, e o propósito deste artigo não é entrar na discussão sobre o caráter destas pessoas e muito menos pôr em causa o julgamento de quem a eles confiou o seu apoio político em nome individual.

Porque das duas, uma: ou se exerce o direito de voto apoiando pessoas com falhas morais, ou então não se exercerá esse direito — não teremos nunca candidatos perfeitos. Duma perspetiva pessoal, parece-me que os candidatos menos imperfeitos, o “mal menor”, são sem dúvida aqueles que defendem valores básicos, como a santidade da vida humana, a proteção da família nuclear, e as liberdades essenciais, como a liberdade religiosa e de pensamento. A direita tem hasteado de facto estas bandeiras.

Isto sem prejuízo de haver valores também profundamente cristãos que têm sido nos últimos tempos sido tradicionalmente defendidos pela esquerda e negligenciados pela direita, como o cuidado com os pobres, a justiça laboral, a garantia de serviços mínimos de forma universal.

No entanto, considerando tudo e aludindo ao tema deste artigo, a verdade que é que a esquerda tem apoiado de uma forma incondicional as filosofias marxista e pós-modernista que chocam de frente com os mais fundamentais valores cristãos, e por isso parece normal — e até porventura recomendável — os cristãos preferirem eleger pessoas que, mesmo tendo falhas morais graves, prometem defender os valores cristãos.

Esta divisão entre os valores de esquerda e de direita é de facto a questão que divide os cristãos mais conservadores daqueles mais progressistas, divergindo estes relativamente a quais os valores que devem tomar primazia.

Mas a tese aqui e o centro desta discussão não é se um cristão deve ser de direita ou de esquerda, mas a seguinte ideia: colar o nome de igrejas e denominações a personalidades políticas, sejam elas quais forem, é um péssimo serviço à causa do Evangelho.

A igreja deve ter uma voz profética na sociedade, estando livre para denunciar o que, tanto de um lado da barricada, como do outro, afronta os valores cristãos — ou aplaudir o que de um lado e de outro exalta os valores cristãos. E igrejas ou denominações apoiarem um candidato ou partido específico de forma institucional, não encaixa, da minha perspetiva, com este papel profético da igreja e representa sempre promiscuidade e o abdicar de valores.

Qual deve ser então ser o centro da abordagem cristã? O centro da mensagem cristã não é uma ideologia nem um conjunto de valores, mas Cristo, e este crucificado.

c) A abordagem cristã: a cruz em ação

A Igreja de Cristo não pode ser conhecida por empunhar bandeiras políticas ou lutar uma luta primariamente ideológica, mas sim por seguir o exemplo de Cristo e anunciar a boa notícia do perdão divino e da redenção oferecida a todos na cruz.

A Igreja, o corpo de pessoas que professam fé em Jesus Cristo, deve ser conhecida, tal como Jesus Cristo, por amar as pessoas e sim, também por falar a verdade em amor; estas duas dimensões da pessoa de Cristo têm de estar sempre em tensão, sob pena de apenas afirmarmos a cultura (quando apenas queremos mostrar graça e negligenciamos a verdade), ou por outro lado de sermos apenas ativistas num lado da barricada (quando o amor e a compaixão desaparecem dos nossos discursos e tiradas ideológicas).

No Evangelho de João, Jesus dirige-se aos seus discípulos da seguinte forma:

(…) Assim como o Pai me enviou, eu vos envio a vós” — João 20:21

Como Jesus foi enviado pelo Pai para abraçar a sua cruz, cada cristão é enviado para, como Jesus, tomar a sua própria cruz. Por isso o próprio Jesus disse aos seus discípulos:

“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me.” - Lucas 9:23

Sim, devemos falar a verdade em amor, mas devemos também estar prontos para sofrer num mundo que é, e sempre será, antagónico aos nossos valores. A nossa inclinação é pegar na espada e dar azo às nossas inclinações naturais, aos nossos medos, e frustrações, e lutar com as mesmas armas do mundo à nossa volta. Mas o chamado de Jesus é que nos neguemos a nós mesmos, que neguemos os impulsos que naturalmente fluem de nós, e lutarmos não com as armas do mundo, mas com “armas espirituais” (II Coríntios 10:4), porque a nossa luta não é “contra carne nem sangue”, mas contra poderes espirituais (Efésios 6:12).

Se as coisas se tornarem tão difíceis que os cristãos serão perseguidos no ocidente por falarem a verdade em amor, então olhemos para Cristo e para a forma como Deus usou a injustiça da cruz para produzir salvação.

Os cristãos não têm medo de ideologias de género ou outras, nem de perseguições e aflições, porque sabem que Deus vai usar todas essas coisas para sua glória.

Os cristãos amam sempre, mesmo se estiverem a ser crucificados por aqueles que amam. Lembremo-nos disso. Amemos. E se estivermos na cruz como Jesus, que possamos, como ele, orar: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem.” (Lucas 23:34).

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