Nacionalismo, patriotismo, e hospitalidade cristã

Joel Oliveira
Crist’óCentro

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Vamos começar a conversa sobre nacionalismo por uma definição: o que é uma nação? Haveria muito para dizer sobre o conceito de nação, mas podemos definir nação de uma forma simples como uma comunidade de pessoas que partilha uma cultura, uma língua, uma história, uma identidade.

Podemos comparar uma nação com uma casa onde vive uma multiplicidade de pessoas, diferentes, mas com uma identidade partilhada. Pessoas que vivem juntas e têm de viver em comunidade.

A primeira pergunta que podemos fazer ao pensar na nação como a nossa casa é a seguinte:

1. Devemos amar a nossa casa?

Parece óbvio que a resposta é sim. Se não amamos a nossa própria casa, como podemos legitimamente amar os de fora? O amor começa dentro, e quem não ama os de dentro não tem autoridade moral para amar os de fora. Que autoridade moral tenho eu para fazer voluntariado e dar de comer aos sem abrigo, se em minha casa a minha família está a passar fome?

Em suma, amar a nossa nação é uma condição necessária para ter autoridade moral para amar outras pessoas e outras nações.

E todos nós amamos a nossa nação, em diferentes graus. Isso é patente na forma como nós nos entusiasmamos com os jogos da nossa seleção, como nos comovemos quando cantamos o nosso hino nacional, como perguntamos aos outros o que acham do nosso país à espera de ouvir elogios (os portugueses são especialistas nosso, já agora).

O amor pela nação vê-se também (e isto nos tempos em que estamos a viver é uma imagem constante nos noticiários) na forma como choram aqueles que vêm a sua terra destruída pela guerra. Ao se ver a nação devastada por invasores, os sentimentos de amor pela casa, que agora se vê destruída, exacerbam-se.

A propósito da guerra e de ameaças à nossa casa/nação, foi recentemente noticiado um discurso do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa em que este defendeu o reforço da defesa nacional:

Pugnar pelo reforço das Forças Armadas “não é ser-se de Direita ou de Esquerda, conservador ou progressista, moderado ou radical”. É, pelo contrário, “ser-se simplesmente patriota, em liberdade e democracia”.

Defender a nossa terra, segundo o nosso presidente, é patriota, o que nos leva à segunda pergunta:

2. Existe alguma diferença entre patriotismo e nacionalismo?

Os Guinness escreve que são a mesma coisa: o nacionalismo é o patriotismo visto com antipatia, e o patriotismo é o nacionalismo visto com simpatia.

O perigo tanto com o patriotismo como com o nacionalismo, diz o mesmo autor, é a idolatria: países e nações tornam-se deuses — falsos deuses — quando são elevados e colocados no lugar de Deus e quando as nossas devoções e lealdades ao nosso país se começam a confundir e a competir com as devoções e lealdades que só a Deus devem ser dirigidas.

Quando se confunde Deus com a pátria, o resultado é sempre mau. Ainda assim, devemos dar a César o amor e lealdade que cabem a César, e a Deus o amor e fidelidade que cabem a Deus. Deus tem de estar no centro, e tudo o resto na periferia.

Esta verdade é evidente no episódio em que perguntaram a Jesus qual o mandamento mais importante, e em que ele disse:

«Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a alma e com todo o entendimento. Este é que é o primeiro e o mais importante dos mandamentos. O segundo é semelhante a este: Ama o teu próximo como a ti mesmo. O essencial de todo o ensino da lei e dos profetas está nestes dois mandamentos.» - Mateus 22:37‭-‬40 BPT09

O amor maior é, portanto, sempre para Deus (com toda a nossa alma, coração, entendimento), e de seguida — só de seguida — estamos preparados para amar o próximo (os nosso compatriotas) como a nós mesmos.

Quando Deus é colocado no centro, tudo o resto que é periférico ocupa o lugar que é devido. Quando o amor a Deus está no centro, todos os outros amores se encaixam no seu devido lugar. Quando temos uma priorização saudável de Deus, tudo o resto se encaixa no devido lugar, incluindo o nosso patriotismo

A chave, como em tudo na fé cristã, é o equilíbrio: muitas vezes não temos necessariamente de eliminar o que não é Deus, mas temos de colocar o que não é Deus no devido lugar, em submissão a Deus, que é o único Senhor.

Não temos de deixar de ser patriotas nem de deixar de amar o nosso país, as nossas pessoas, com quem partilhamos uma casa. Mas temos de ter cuidado para que esse amor patriótico não se sobreponha ao amor àquele que deve sempre ter toda a proeminência: Deus. Além disso, também temos de ter em mente que apesar de termos uma ligação inegável à nossa pátria terrena, quando nos tornamos cristãos, esta passa a ser secundária: como a Bíblia ensina, os cristãos são peregrinos neste mundo, e têm uma nova pátria, uma pátria celestial, que será a sua pátria eterna. Devemos ser leais à nossa pátria terrna, mas a nossa principal lealdade é à nossa nova pátria, o Reino de Deus. É essa proeminência do Reino de Deus na nossa vida que nos dá, por um lado, a capacidade de colocar o amor à pátria terrena no lugar certo (secundário), e por outro lado a capacidade de ter uma voz profética para com essa mesma pátria terrena: exaltamos aquilo que há de agradável a Deus na nossa cultura, mas temos discernimento suficiente para criticar aquilo que na nossa cultura é pecado e contrário à vontade de Deus.

Resumindo, e voltando aos termos que estamos a usar, do que vimos até agora, podemos concluir que há:

- Bom nacionalismo (para não nos confundirmos nos termos, vamos chamar a este bom nacionalismo, patriotismo)

- Mau nacionalismo (vamos chamar ao mau nacionalismo, nacionalismo)

O patriotismo é então o sentimento de que somos família com um povo com quem partilhamos uma história e uma cultura (que nos leva a defender a nossa pátria e a orgulharmo-nos do que somos enquanto nação); o nacionalismo é quando amamos tanto a nossa nação que colocamos a nação no lugar que só a Deus pertence.

Estamos a pensar na nação como uma casa, uma família. Quando temos essa perspetiva da nação, tudo se torna mais claro e mais fácil de enquadrar. Por exemplo, precisamos urgentemente de enquadrar algo que está na ordem do dia, e que envolve o tema do nacionalismo: a imigração. É mais fácil desenvolver uma perspetiva equilibrada sobre a imigração se pensarmos na nação como uma casa. Uma perspetiva equilibrada em que somos patriotas sem ser nacionalistas.

Como cristãos, somos chamados para sermos leais primeiramente à nossa pátria celestial, e também para ser patriotas para com a nossa nação (amar a nossa casa terrena). Mas somos chamados também para ser hospitaleiros e acolhedores para com os de fora. Somos chamados a amar os da casa primeiro, mas a ser um modelo e um exemplo de hospitalidade para com os de fora, amando-os de forma igual, sem fazer distinção de pessoas.

Chegamos à terceira pergunta desta reflexão:

3. Como podemos ser patriotas sem ser nacionalistas e acolher bem os de fora sendo hospitaleiros para com os imigrantes?

Quando penso em hospitalidade na cultura portuguesa, costumo dizer que como portugueses temos uma hospitalidade falsa: somos por regra muito simpáticos e amáveis no trato, mas a porta da nossa casa muito raramente se se abre para pessoas que não a família de sangue ou amigos muito íntimos. Esta é a raiz do nacionalismo: a idolatria da família de sangue, a porta da casa fechada para os estrangeiros e os de fora.

No entanto, antes de continuar, é necessário fazer já uma ressalva: as pessoas que vivem numa casa, têm de escolher criteriosamente quem deixam entrar e quem fica fora. Esse critério tem de existir porque há pessoas que aproveitam a hospitalidade, mas vêm para destruir e abusar da boa vontade de quem recebe. É evidente que, como uma casa tem de ser defendida de ladrões que vem para roubar, uma nação tem de ser defendida de invasores que vêm para destruir.

Alguém está à espera que o povo ucraniano, por exemplo, seja hospitaleiro com os soldados russos invasores? Podem acontecer atos sobrenaturais de hospitalidade, mas terá de haver sempre um “critério de seleção”: “entras em minha casa para destruir, ou para me respeitar como alguém que está a acolher?”. Só numa dessas situações porta se poderá abrir.

Não falamos aqui apenas de agressões militares mas de todas as pessoas que querem entrar com más intenções, para abusar da hospitalidade. As fronteiras são as portas da casa, e é preciso decidir quem deixamos entrar. Nós não deixamos entrar qualquer pessoa em nossa casa. Alguém teria coragem de pedir a uma mulher vítima de violência doméstica que fosse hospitaleira com o eu agressor? Ou seríamos capazes de ser hospitaleiros com alguém que tivesse abusado de um filho nosso?

Se deixamos entrar indiscriminadamente quem vem para abusar e destruir, como é que se vão sentir as pessoas da casa? Ameaçadas, e com razão. Com medo, e com razão. E o medo (com razão e sem razão, porque há medo completamente irracional e injustificado) é o combustível do nacionalismo.

Políticas sadias de imigração — hospitaleiras mas patrióticas — são então necessárias para receber bem os de fora e proteger os de dentro. Uma ativista e autora somali chamada Aayan Hirsi Ali, vinda do islamismo, e que encontrou asilo político na Holanda e vive hoje nos EUA, defende precisamente isso. Depois de ter sofrido vários tipos de abuso às mãos do radicalismo islâmico no seu país natal (incluindo mutilação genital feminina), tornou-se deputada na Holanda e passou a advogar políticas de imigração responsáveis, que assegurassem que o radicalismo islâmico não se viria a instalar na Europa, como ela denuncia que infelizmente já está a acontecer em muitos países.

Por outras palavras, a hospitalidade tem limites. Se assim não for, pomos em perigo os que estão dentro (até os próprios imigrantes doutras nações que se desejam realmente integrar) e empurramos os de dentro para sentimentos nacionalistas. Aayan Hirsi Ali defende que a ascensão dos chamados partidos populistas anti-imigração na Europa não é obra do acaso, mas em grande parte tem origem precisamente na irresponsabilidade de quem deixa entrar indiscriminadamente.

E nas igrejas, entre os cristãos, será que a hospitalidade tem também limites? Olhando para algumas passagens (incómodas) da Bíblia, é óbvio que sim.

Disse-vos numa carta para não conviverem com gente que pratica imoralidades sexuais. Não me queria referir a todos os que, no mundo, são imorais, gananciosos, ladrões ou adoradores de falsos deuses. Se assim fosse, teriam que fugir deste mundo. Queria dizer que não tivessem contacto com aqueles que se dizem crentes e são imorais, gananciosos, adoradores de falsos deuses, caluniadores, bêbedos ou ladrões. Com esses, nem sequer se devem sentar à mesa. — 1 Coríntios 5:9‭-‬11 BPT09

Paulo, tratando aqui de uma situação de grave imoralidade na igreja de Corinto (uma situação em que a pessoa em questão se recusava a mudar de comportamento), ensina que com pessoas que se dizem crentes e vivem um estilo de vida de imoralidade, nem à mesa os cristãos se devem sentar. Algumas pessoas escolhem ignorar esta passagem, e até defendem que esta é uma passagem que mostra o caráter demasiado severo de Paulo. Mas o apóstolo João na sua segunda carta fala-nos em termos muito semelhantes, embora numa situação diferente:

Há muitos impostores espalhados pelo mundo, que não querem reconhecer que Jesus Cristo se fez homem. Quem assim procede é impostor e Anticristo. Sejam cuidadosos em conservar os frutos do vosso trabalho, para assim receberem a plena recompensa. Quem sai do caminho e não permanece fiel aos ensinamentos de Cristo não tem Deus consigo. Aquele que permanece fiel aos ensinamentos de Cristo tem em si tanto o Pai como o Filho. Se alguém vier ter convosco e não ensinar assim, não o recebam nas vossas casas e nem sequer o saúdem. É que, se o saudarem, tornam-se cúmplices das suas más ações. — 2 João 1:7‭-‬11 BPT09

Neste caso, João está a falar de pessoas com influência nas igrejas, que ensinavam doutrinas heréticas, nomeadamente o gnosticismo. Temos já duas situações que impõem limites à hospitalidade: pessoas que se dizem crentes mas vivem em imoralidade e sem arrependimento e pessoas que ensinam doutrinas que atacam os fundamentos da fé cristã.

Mas não são apenas os apóstolos que colocam limites à hospitalidade cristã com o objetivo de salvaguardar a integridade dos crentes e da igreja. O próprio Jesus mostra esses limites, por exemplo, na parábola da boda:

Ao entrar na sala para ver as pessoas que estavam à mesa, o rei viu um homem que não estava vestido com o traje habitual de casamento e perguntou: “Amigo, como é que entraste aqui sem a roupa própria de casamento?” O homem ficou calado. Então o rei disse aos criados: “Amarrem-no de pés e mãos e atirem-no lá para fora para a escuridão. Ali haverá choro e ranger de dentes.” De facto, os convidados são muitos, mas os escolhidos poucos.» — Mateus 22:11–14

Todos são convidados por Deus para a mesa, mas os falsos, que querem participar da mesa mas não viver (vestir o traje) de forma consistente com os valores do Reino, são expulsos da mesa.

O músico Carlos Santana disse, numa citação que ficou célebre:

Um dia não haverá fronteiras, nem limites, nem bandeiras, nem países, e o único passaporte será o coração.

É uma imagem linda, mas ainda não é para se tornar realidade agora. Esta imagem vai tornar-se realidade quando Jesus criar novos céus e nova terra, e erradicar do universo toda a tendência destrutiva e todo o abuso. Enquanto isso não acontece, num mundo com fronteiras, a hospitalidade tem de ter limites. E se alguém não acredita que as fronteiras são necessárias enquanto esse mundo novo não chega, seja coerente e pare já de trancar a porta de sua casa.

O nosso desafio é então este: como podemos equilibrar as fronteiras e a propriedade privada com a hospitalidade? Será que para sermos verdadeiramente hospitaleiros temos de acabar com fronteiras e tirar as portas da nossa casa? Não, porque a própria definição de hospitalidade é convidar alguém a entrar no espaço que é nosso, e partilhar daquilo que é nosso com quem deixamos entrar! Não é possível exercer hospitalidade se não tivermos algo que seja nosso e que estejamos dispostos a compartilhar.

Impõe-se então uma quarta e última pergunta, que é crucial:

4. o que é que estamos dispostos a compartilhar?

Uma das grandes falhas humanas na questão da imigração é precisamente a hospitalidade. Ser hospitaleiro não é apenas deixar alguém entrar e dar-lhe alguns recursos para se orientar. É acolher, é abrir a casa, é partilhar a vida, partilhar a mesa, é cuidar. O que interessa ser a favor de receber imigrantes, e até fazer voluntariado com refugiados, se não abrimos a porta da nossa casa para os sentar à mesa?

Já não estamos a falar de casa no sentido figurado. Se apoiamos políticas de acolhimento aos refugiados e migrantes, então há que ser coerentes, e abrir mesmo a porta de nossa casa para os receber. O mal das nações na questão da imigração é abrir as portas das fronteiras, mas depois não haver uma cultura de abrir as portas das casas. Então junta-se toda a gente em bairros sociais, em ghettos, que é o mais confortável para todos.

Claro que esta é uma questão que não se resolve só com boas políticas (que são necessárias); no seu nível mais profundo, esta questão só se resolve mudando a cultura, mudando o coração. Não se pode impor a alguém ser hospitaleiro; a hospitalidade tem de partir de um coração que ama e deseja acolher. Como cristãos, somos chamados a amar e exercer hospitalidade com os de fora, e também a amar e proteger os de dentro. Somos chamados ao amor e ao cuidado com os de dentro, e ao amor, acolhimento e hospitalidade com os de fora, acolhendo quem nos visita, como Deus nos acolhe.

Deus acolhe-nos, e essa é a maior demonstração de amor e hospitalidade: o Deus que veio até nós para convidar toda a humanidade a entrar em sua casa. Como cristãos, conhecemos esse amor incrível e aceitamos esse convite. E só desfruta dessa hospitalidade suprema quem aceita o convite. Só é recebido por Deus quem verdadeiramente está disposto a recebê-lo

Nós somos chamados a aceitar o convite de Deus, e estender esse convite para todos os que ainda não o aceitaram. Com todo o amor e hospitalidade, com um patriotismo saudável, e sem nacionalismos idólatras.

Palestra ministrada na Conferência Refletir, em 22 de Maio de 2022

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