O que é afinal a Igreja?

Joel Oliveira
Crist’óCentro
8 min readDec 16, 2021

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Comecei a pensar mais seriamente sobre o que “Igreja” significa quando comecei a pastorear uma. Não que não tivesse pensado no tema antes, ou que não tivesse aprendido sobre o conceito teológico de Igreja — mais do que ensino teológico teórico, tive o privilégio de começar a minha vida cristã numa igreja saudável, que não apenas ensinava o que era Igreja, mas que era efetivamente Igreja. Mas à medida que ia mergulhando mais no ministério pastoral, fui sendo obrigado a procurar mais aprofundadamente qual o significado primário do conceito de Igreja, a essência daquilo que realmente a Igreja é. Conhecia bem as metáforas do Apóstolo Paulo na primeira carta aos Coríntios: a metáfora do corpo, a metáfora do edifício, a metáfora do pão. Também conhecia o tratado teológico que Paulo envia aos Efésios, apresentando a Igreja como parte integrante do plano eterno e perfeito de Deus para o universo.

Mas conforme ia sendo confrontado com situações em que precisava de consubstanciar a necessidade de alguém se conduzir de uma certa forma com aquilo que a Igreja é suposto ser, ficava um pouco perdido. Exemplos tão corriqueiros como este: porque é que devemos esperar que as pessoas partilhem com os pastores da igreja as razões pelas quais decidem não aparecer nas celebrações, em um, dois ou três domingos seguidos? Ou quando assumem um compromisso e não o honram? Ou — um exemplo menos corriqueiro mas muito comum — quando tomam decisões importantíssimas nas suas vidas privadas e não sentem que a Igreja tenha algo a ver com isso?

Ora, não querendo eu ser legalista e dizer “é assim porque tem de ser” (transformando algo que me parecia genuinamente importante numa mera exigência burocrática), procurava uma justificação, uma base, uma essência, algo que desse sentido à expectativa que me parecia razoável ter enquanto pastor e responsável pela comunidade.

Enquanto membro sem responsabilidade pastoral, era algo natural em mim conduzir-me de forma apropriada. Talvez por causa da forma como fui educado e ensinado a honrar quem estivesse em autoridade, nunca tive dificuldades em cumprir todas as burocracias. Sabia cumprir as regras com facilidade. Mas claramente faltava-me a base bíblica para esse comportamento.

Algo que sem dúvida ajudou a espicaçar essa reflexão sobre o que Igreja significa foi também a minha experiência de sete anos de ministério interdenominacional, nos quais tive a oportunidade de visitar todo o tipo de igrejas locais, todas tão diferentes umas das outras (e com muitas coisas em comum obviamente, fazendo todas parte da linha evangélica protestante). Na esmagadora maioria das igrejas que visitei senti-me bem recebido. Mas eu não era uma visita anónima. Era uma pessoa muitas vezes convidada, algumas vezes para pregar, e com honras de liderar um ministério universitário com 50 anos de existência, o que proporcionava credenciais e um certo estatuto.

Mas experiências mais próximas de ser totalmente anónimo em visitas a igrejas, depois da minha conversão, foram duas: a primeira enquanto fiz voluntariado no Desafio Jovem, em que participei em campanhas evangelísticas esporádicas em igrejas locais, e a segunda mais recente, durante o meu primeiro tempo sabático, já como pastor.

Nessa segunda ocasião passei por vários lugares e visitei algumas igrejas, embora não na condição de visitante totalmente anónimo, porque acabava por ser reconhecido na maior parte dos lugares. Mas era anónimo o suficiente para ter oportunidade de sentir na pele um pouco daquilo que uma pessoa anónima sente, tendo, ao mesmo tempo, uma visão de quem já fazia parte de uma estrutura eclesiástica. Essa visão fazia com que me saltassem à vista vários pormenores, alguns que sentia que estavam em falta, outros que sentia serem pontos fortes nesses contextos. É importante frisar que nunca fui com espírito cínico e meramente avaliativo para os cultos a que assisti; queria genuinamente estar em comunhão com uma igreja local. Mas para quem já tem a experiência de estar por trás de toda a organização de uma comunidade, é impossível não ter um “olho clínico” e não reparar em cada pormenor.

No entanto, o que me continuava a faltar nesse sentir de cada pormenor era um quadro de referência para a minha “avaliação”. Era como se estivesse a examinar peças de um puzzle de 500 peças (o máximo que já consegui fazer, para minha vergonha) sem ter a noção da imagem total que essas peças deveriam construir. Qual é, afinal, a imagem que todos os elementos envolvidos na vida de uma igreja local devem compor?

O que é, afinal, a Igreja? É confrangedor como os cristãos, que são pessoas em cujas vidas a religião e a igreja têm (ou devem ter) um papel central, se esquecem muitas vezes de fazer esta pergunta fundamental. E porque nos esquecemos, vamos assumindo que “Igreja” corresponde às ideias que se vão formando mais ou menos espontaneamente na nossa mente. Por vezes essas ideias vêm de definições teológicas que aprendemos; outras vezes vêm do contacto que fomos tendo, durante o nosso desenvolvimento e em diferentes medidas, com contextos religiosos; e outras vezes vêm da cultura a que somos expostos, de todo o ambiente que nos rodeia, e que através dos media e da cultura pop, das redes sociais e da socialização em geral, nos vai forma(ta)ndo.

Normalmente as ideias que temos de Igreja são produto de uma mistura de todos estes fatores. E quando não nos debruçamos regularmente sobre a Bíblia — toda a Bíblia — para renovar o nosso entendimento daquilo que realmente a Igreja é suposto ser, ficamos com um conceito pobre (se não totalmente errado) de Igreja. As consequências desta distorção do conceito de Igreja são absolutamente trágicas.

O que é a Igreja? Ao usarmos o próprio termo “Igreja”, é fundamental termos consciência de que há três possíveis significados para esta palavra, que embora sendo inseparáveis, são diferentes.

1) Quando escrevemos ou lemos Igreja no singular e com inicial maiúscula, podemos estar a falar da Igreja enquanto instituição, como por exemplo a Igreja Anglicana ou a Igreja Católica Apostólica Romana. Essa utilização do termo Igreja refere-se a uma instituição eclesiástica ou denominação oficial.

2) Quando falamos da Igreja de Cristo, também com I maiúsculo e no singular, podemos estar a falar da Igreja universal, isto é, todos os discípulos de Jesus, em todos os tempos e lugares, os verdadeiros filhos de Deus — que são aqueles que receberam Cristo como seu único Senhor, aqueles que realmente crêem no seu nome de todo o seu coração (o apóstolo João explica no seu Evangelho que é essa a condição necessária para alguém se tornar filho de Deus, em particular no verso 12).Todos esses são parte integrante da Igreja de Cristo.

3) Mas essa família de salvos que são transformados mediante a fé no sacrifício de Jesus na cruz e na sua ressurreição, não habitam num vazio, mas congregam em igrejas locais (plural e com letra minúscula). Uma imensidão de comunidades, em todas as partes do mundo, com culturas diferentes, línguas diferentes, até doutrinas diferentes (diferenças doutrinárias que podem fazer uma determinada igreja deixar de ser “de Cristo”, e não poder mais ser chamada cristã, será um tema a ser discutido mais adiante).

E quanto à origem da palavra igreja? Este vocábulo nasce da palavra grega Ekklesia, uma palavra composta por duas: Ek (fora) e kaleo (chamar). Significava assim algo como “chamados para fora”, e usava-se na linguagem comum de várias formas para expressar o conceito de reunião, comunidade, ou grupo (há registo até de um grupo de animais ser chamado ekklesia em escritos gregos do século IV a.C.). Mas apesar desta utilização corriqueira, Ekklesia tinha um uso frequente em contextos oficiais, para designar uma assembleia de líderes reunidos, principalmente políticos ou judiciais. Esse significado de “assembleia dos chamados” para resolver problemas e tomar decisões era comum no mundo grego — a Ekklesia ateniense, por exemplo, já existia em 621 a.C., sendo constituída pelo corpo de cidadãos do sexo masculino, a partir de 18 anos de idade. Detinha controlo absoluto sobre a política, incluindo o direito de ouvir recursos na hēliaia (tribunal público), participar na eleição de arcontes (magistrados chefes) e conferir poderes especiais a certos indivíduos.

A cultura grega influenciava profundamente todo o mundo conhecido no tempo de Jesus e dos apóstolos, e uma palavra que era comum no meio em que se moviam foi adotada por Jesus para designar não um qualquer grupo ou assembleia, mas a Sua assembleia.

13 E, chegando Jesus às partes de Cesareia de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do Homem? 14 E eles disseram: Uns, João Batista; outros, Elias, e outros, Jeremias ou um dos profetas. 15 Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou? 16 E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. 17 E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai, que está nos céus. 18 Pois também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;

- Mateus 16:18 — ARC (grifo meu)

A partir do primeiro século, os discípulos de Jesus passaram a juntar à palavra Ekklesia as palavras tou Christou ou tou Theou, formando assim a expressão “Assembleia de Cristo” ou “de Deus” — a assembleia de todos os chamados para ser seguidores e representantes de Cristo na terra, aqueles contra quem as portas do inferno não poderão prevalecer. Como vemos nesta passagem, a Igreja foi fundada pelo próprio Cristo em obediência a Deus Pai, sendo ele, Cristo, a pedra principal sobre a qual a Igreja está edificada. É no nome dele, e apenas no nome dele, revelado por Deus Pai e confessado aqui pelo Apóstolo Pedro, que está fundada a Igreja.

Jesus fundou a Igreja, mas subiu aos céus antes que ela fosse inaugurada e não esteve fisicamente presente na sua inauguração oficial. No entanto, enviou o Espírito Santo que tinha prometido, o qual “cortou a fita” no dia de Pentecostes (Atos 2). O Espírito Santo está plenamente presente na Igreja, e confere-lhe, habitando em cada crente pessoalmente, e movendo-se no corpo de crentes como um todo, o poder de Deus para a missão — missão essa que era, e é até hoje, ajudar a formar e desenvolver comunidades de discípulos, (primeiro na Judéia, depois em Samaria, e até aos confins da terra — Atos 1:8). Essas comunidades seriam assim testemunhas de Cristo na terra, multiplicando-se sem parar, muitas igrejas que formariam a Sua Igreja universal. Quando usamos a palavra Igreja, é a esta incrível história e a este poderosíssimo conceito que nos estamos a referir. Quando confessamos que somos Igreja, e o somos de facto, é neste incrível mistério que estamos a participar.

Demos umas pinceladas no conceito de Igreja, e ficamos com boas ideias bíblicas sobre o mesmo. Mas será que podemos ir mais longe e chegar à essência do que Igreja realmente é no seu nível mais profundo? Eu acredito que as Escrituras nos ensinam que sim, podemos, e no próximo texto iniciamos essa descida em direção às profundezas.

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