Quatro distorções modernas do conceito de igreja

Joel Oliveira
Crist’óCentro

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Começamos no texto anterior a perceber a grandiosidade do que está envolvido no conceito de Igreja: a Ekklesia de Cristo não é uma assembleia qualquer. Esta Igreja universal, com I maiúsculo, é a assembleia de irmãos e irmãs, filhos e filhas de Deus salvos e transformados por Cristo, os quais, estando unidos a Cristo, são um só n’Ele. A Igreja não é um conjunto aleatório de pessoas, é o imenso corpo dos chamados por Deus e escolhidos por ele para ser seus. “Uma multidão impossível de contar, de todas as nações, tribos, povo e línguas”, como nos é descrito em Apocalipse (7:9). É uma imagem sublime que nos inspira e deslumbra.
Mas esta multidão, no momento presente da história, não está reunida, mas espalhada. Espalhada por uma imensidão de pequenas igrejas locais, que, estas sim, são já um conjunto bem mais “caótico” de pessoas. Nas igrejas cristãs é suposto todos serem bem-vindos, independentemente de terem ou não fé em Cristo (exceto em casos de flagrante e repetido desrespeito por tudo o que a igreja é e representa). Por isso, é comum encontrarmos nas igrejas locais grupos heterogéneos, compostos por pessoas de todas as idades, interesses e condições sociais, entre as quais se contam muitas que não querem saber de Deus para nada - e até algumas para quem Deus é um ser odioso. Encontramos também muitas pessoas que são apenas simpatizantes, visitas, ou curiosos. Pessoas que vêm, ficam algum tempo mas vão embora pouco depois. Pessoas que apreciam sobretudo a celebração religiosa em si, e andam de comunidade em comunidade, incessantemente à procura de lugares com mais brilho e que encham mais o olho. Pessoas que só querem da igreja aquilo que esta lhes pode dar para suprir as suas necessidades, e vivem à espera que os outros as sirvam. Pessoas para quem a igreja é apenas um projeto, servindo apenas para alimentar as suas ambições e ânsia por protagonismo. Há de tudo nas igrejas locais. Ou deveria haver.
Mas ainda que sejam contextos caóticos, as igrejas locais também não são conjuntos aleatórios de pessoas: são assembleias de pessoas em que pelo menos um núcleo comprometido professa uma fé comum - os chamados membros da igreja. É suposto que quem se assume como membro, quem se compromete a pertencer e abraça a igreja de forma plena, viva com o objetivo de aprender a cada dia mais sobre o Deus que se manifesta plenamente em Jesus, o Deus que é revelado pela Palavra de Deus, a Bíblia - e que deseje viver e partilhar tudo isso.

Claro que ao falar de “igrejas locais”, como se pudéssemos colocar todas no mesmo saco, estamos a generalizar. As igrejas locais são tão diversas entre si como o são internamente. Há igrejas locais secas, onde apenas se vive uma religiosidade ritualista e vazia e onde, se Deus está, há muito que nenhum sinal dele se faz notar. Há também igrejas locais com um foco comum em Cristo, onde ele e a sua mensagem são o centro. Onde Cristo é realmente o centro (não necessariamente onde se diz que ele é o centro) respira-se saúde. Em tais assembleias, o amor, a vivência séria da fé pela Palavra de Deus, a comunhão com Deus pela oração, a hospitalidade, a caridade, o sentido de missão, e muitas outras marcas de igrejas saudáveis estão entranhadas na cultura local. Seja o que for que a Igreja é, a centralidade de Cristo é a condição essencial, porque sem Cristo e os valores do Reino no centro e no fundamento da Igreja, não pode haver uma vivência à semelhança de Cristo. E sem essa vivência, a Igreja é tão infrutífera como o sal que não tempera.

Voltemos aos primeiros séculos da existência da Igreja. Nesse tempo não havia que enganar: se há um grupo de discípulos, uma assembleia de pessoas reunidas em torno de um núcleo de cristãos comprometidos que pastoreiam, alimentam, discipulam e ensinam segundo a Palavra de Deus, aí está uma igreja. Mas infelizmente - tragicamente - com o fim da perseguição à Igreja por parte do império romano, ocasionada pela alegada conversão do imperador Constantino à fé cristã, o conceito de Igreja enquanto assembleia começou a deteriorar-se, e a confundir-se com outras coisas. Com a construção de templos e catedrais, por exemplo, o entendimento de “igreja local” passou gradualmente a centrar-se no templo. E ainda que seja bom ter um foco geográfico, se esse foco obscurece a importância maior que deve ser atribuída à assembleia, a igreja passa a ser o local onde se vai, em vez daquilo que se é, a assembleia a que se pertence. 
Mas não foi a construção de templos o único fator a contribuir para desvirtuar a natureza da igreja local. Não foi sequer esse o fator principal: a promiscuidade da Igreja com o poder político, administrativo e militar, o degenerar da identidade da Igreja e dos seus líderes (que passaram a ser detentores de terras e fortunas, privilégios, e luxos) e a construção de um papel social de polícia moral e intelectual da sociedade, todos esses processos foram determinantes em obscurecer o real caráter da Igreja.

O movimento de Reforma Protestante do século XVI com o seu baluarte de separação entre Igreja e Estado, e a guerra que travou para resgatar os pilares fundamentais da fé cristã segundo a Bíblia, foi instrumental em mudar este rumo, tentando devolver à Igreja o seu verdadeiro caráter, a sua verdadeira identidade de testemunha de Cristo. Poderia a Igreja reformada voltar a ser uma assembleia de testemunhas que, não comprometida com outras agendas que não a do Reino de Deus, voltasse a ser realmente a luz de Cristo para as nações?
Antes de pensarmos sobre isso, é preciso dizer que mesmo que no seu todo institucional a Igreja se tenha misturado com o poder político, e negociado tantos dos valores do Reino de Jesus, sempre houve no seio da Igreja pessoas e movimentos fiéis a Cristo e ao Evangelho, que se batiam por viver e proclamar os valores do Reino. Debaixo das rígidas camadas hierárquicas e do legalismo e dogmatismo estéril, a verdadeira Igreja esteve sempre lá. Esteve lá a exaltar os valores da fé genuína e profunda, do amor por Deus e pelo próximo, a promover a caridade, o cuidado com os pobres, a dignidade intrínseca do ser humano, o valor de cada pessoa aos olhos de Deus. A Igreja não pára, nunca parou e nunca parará, porque nem as portas do inferno contra ela podem prevalecer. A Reforma Protestante, com todas as suas imperfeições, foi um esforço nesse sentido, de trazer a Igreja cristocêntrica das “catacumbas” para a superfície e fazer explodir o Evangelho de Jesus, que só a Palavra de Deus (ocultada ao povo pelas cúpulas) pode revelar.

Com a Reforma Protestante, e movimentos subsequentes que se seguiram, como o Iluminismo, veio outra era: a modernidade. A modernidade trouxe novos valores (valores que emergiram da própria Reforma) mas que, por causa do Iluminismo que substituiu a autoridade divina pela autoridade da razão humana, foram arrancados das suas raízes cristãs e da sua base bíblica. Vamos ver quatro desses valores, que nos irão servir de referência para a nossa análise do que tem influenciado a Igreja moderna, e do que a Igreja não deve ser:

1) a Reforma resgatou a importância da fé individual, não mediada por qualquer autoridade sacerdotal. Segundo a Bíblia, há um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem (I Timóteo 1:25), e por isso nenhum cristão precisa de permissão eclesiástica para viver a sua fé. Quando essa ideia é arrancada da sua base cristã, o que fica é o individualismo, a ideia de que o indivíduo e os seus interesses são supremos. O que interessa é EU identificar-me, EU sentir-me bem, EU ter uma boa experiência, EU e Deus, EU e a minha fé - e os outros que se ajustem se quiserem. É a Igreja como um supermercado de experiências, onde se “vai” para obter entretenimento e um espetáculo religioso agradável.

2) a Reforma renovou a ideia bíblica de que não há ministérios inferiores, e de que o trabalho chamado “secular” é afinal tão sagrado como o trabalho eclesiástico. “O que fizeram, façam-no de todo o coração, como se estivessem a servir o Senhor e não os homens”, escreveu Paulo aos Colossenses (3:23). Quando essa ideia é arrancada da sua base cristã e o “servir o Senhor” da passagem desaparece, o que fica é o capitalismo, o trabalho e o lucro como valores absolutos. O que interessa é o crescimento, são os resultados, é atingir os objetivos - independentemente de quem fica pelo caminho. É a Igreja-empresa, onde as pessoas não são tanto membros de um corpo mas voluntários que trabalham em projetos; não são tanto filhos que Deus Pai está a formar, mas ferramentas que devem ser super-eficientes para que se possa “chegar mais longe” em tamanho e estrutura. O objetivo declarado pode ser alcançar o mundo para Jesus, mas o objetivo real é muitas vezes chegar ao topo do mercado religioso e esmagar a concorrência - custe o que custar.

3) A Reforma reivindicou a autoridade da Bíblia, a Palavra de Deus, relativamente às estruturas eclesiásticas. Mas a modernidade inspirada pelo Iluminismo dá um passo mais à frente e rejeita não apenas a autoridade do clero, mas a autoridade do livro sagrado desse clero. Segundo a modernidade, não é então a Bíblia, mas a razão humana a única fonte de autoridade. Para a Igreja sobra o papel de dar ao homem a religião que ele pode viver em privado, mas sem impor a ninguém a sua fé irracional. A igreja local deixa de ser a assembleia de Cristo, no seio da qual se conhece a verdade, e passa a ser apenas um local religioso, onde se “vai” em dias sagrados. É a igreja-religião que fica dentro das quatro paredes do templo e não toca a vida prática. Onde o ambiente eclesiástico é rígido, frio e baseado em regras, em que as listas de leis e tradições são supremas, e as pessoas e a compaixão são secundárias. Onde há lugares marcados, caras fechadas, e zero hospitalidade. Onde se presta culto a um Deus abstrato, vazio, apenas uma estátua no altar ou uma ideia vaga na mente, que não tem nenhuma tradução na forma como se vive em relacionamento com o Deus verdadeiro, consigo mesmo e com os outros.

4) Há um outro valor que sobra quando se sucumbe ao apelo da modernidade de ver a Bíblia como apenas mais um livro sagrado sem autoridade: o valor da caridade e da solidariedade humana, que ao suplantar a Bíblia, passa a ser mais importante do que o próprio Deus que os originou. É a igreja-centro-social, em que um grupo de pessoas pratica algumas tradições, celebra algumas festividades, mas onde o ênfase principal é colocado nos benefícios da inter-ajuda comunitária. A Igreja onde se “vai” porque há pessoas que nos ajudam e cuidam de nós, e porque há uma causa social que precisa de voluntários para funcionar. A espiritualidade nesses contextos é tipicamente vaga, e a reflexão doutrinária é superficial, porque o que importa é “fazer o bem”. A igreja local deixa então de ser a assembleia de Cristo, no seio da qual se aprende a viver e proclamar a fé à maneira de Jesus, pelo poder do Espírito de Deus, e passa a ser apenas uma associação de pessoas para fazer o bem - que não precisam do Espírito de Deus para nada, porque o intuito principal não é o testemunho profético, mas apenas realizar obra social que qualquer não-cristão pode igualmente fazer.

Ficamos assim com quatro tipos de distorção do verdadeiro conceito de Igreja, que dão origem a quatro tipos diferentes de igrejas e que são resultado de processos históricos que duram há séculos. Antes de as apresentar é importante deixar claro que normalmente as igrejas são uma sobreposição de vários graus destas distorções - obviamente não existe a igreja local perfeita. Mas há uma diferença entre as igrejas que caem acriticamente num destes paradigmas distorcidos e abraçam um ou mais destes modelos ingenuamente (desvirtuando a essência da Igreja), e igrejas que estão atentas e vigilantes para não caírem nestes erros - embora em qualquer contexto de igreja haja sempre traços destas distorções devido à natureza humana, também ela distorcida pelo pecado. Portanto poderemos reconhecer na nossa ou noutras realidades que conhecemos um ou mais destes modelos a predominar, e ainda traços de todos eles. São eles:

  1. A igreja-do-Eu

2. A igreja-empresa

3. A igreja-religião

4. A igreja-centro-social

Estes quatro nomes que estamos a dar a estes paradigmas de igreja referem-se a coisas que são boas e importantes numa igreja saudável: é importante levar em conta cada indivíduo na sua especificidade (o eu); é importante haver ordem e bom funcionamento e não desordem e confusão (aprendendo métodos de gestão com o mundo corporativo mas sem incorporar indiscriminadamente os seus valores); é bom ver a igreja local como um dever e não apenas um lugar onde se vai quando apetece, e é bom ter rituais, solenidades e liturgias, aquilo a que podemos chamar religião (desde que não sejam vazios e resultado de tradicionalismo); é bom haver convívio e apoio social (a igreja como catalisador de relacionamentos, inter-ajuda e caridade). 
Contudo, o que propomos aqui, é que a Igreja, na sua essência, não é nenhuma destas coisas e que cair no erro de transformar o que é suposto ser periférico em algo essencial e remeter o essencial para a periferia provoca distorções graves da verdade, com consequências desastrosas. 
Depois de percebermos qual o conceito que melhor descreve o que é a Igreja na sua essência, vamos viajar por essa essência guiados pela Bíblia, e perceber melhor como cada uma destas trocas do que é essencial para a periferia e do que é periférico para a essência concorre contra o propósito de Deus para cada dimensão da Igreja desde a sua base.

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