Noah (2014)

Podia ser mais, Aronofsky. 

Matheus Massias
5 min readApr 13, 2014

Para as pessoas que me perguntaram, uma grande dúvida foi dizer se eu achei Noé (2014) bom ou ruim. Eu diria: é bom e ruim. Ou melhor, é ruim e bom. Não é alguma convenção, mas eu dividiria o filme antes e depois da tempestade colossal que cai e a arca entra em ação, a história que todo mundo conhece. Meu conhecimento bíblico é bem limitado, confesso; no entanto, há coisas no filme que parecem absurdas demais, como aqueles gigantes de pedra. Aquilo me intrigou bastante, até diria, incomodou.

A primeira parte do filme parece um Mad Max religioso misturado com um Transformers da pré-história, inundado em maniqueísmos, na divisão extrema entre os bons e os maus, que são os descendentes de Caim, os homens. Noé (Russell Crowe, ator que tem cada vez mais cara pra filme épico) e sua família são as únicas pessoas boas na face da Terra, além de seu avô (?), Matusalém (Anthony Hopkins), uma figura anciã que parece ter adquirido poderes depois de tanta vivência e servidão a Deus. E Deus, a figura superior a todos os meros mortais, fala com Noé, através de sonhos, que não sabendo interpretar, decide procurar seu sábio avô.

Os lugares do filme despertam uma dúvida terrível no que concerne sua naturalidade, durante a exibição fiquei crente de muito do que via foi feito em estúdio, exceto poucos lugares, como a ilha das cenas finais do filme (será?). Créditos finais mostram produção na Islândia (paisagem perfeita para a história, de fato). Aliás, assim como a figura de Deus, que para muitos traz dúvida, o filme também nos enche dela. Algo peculiar em filmes de Aronosky, como Pi e Réquiem para um Sonho, é a técnica chamada hip-hop montage que, através da edição, uma sequência de imagens ou ações é mostrada num ritmo rápido, junto com efeitos sonoros, a fim de simular uma certa ação; em Noé isso volta, mas de uma forma um tanto infantil e tosca, no momento da cobra e da maçã, geradas através de computação, parecendo mais animação para crianças entenderem o pecado original.

Russell Crowe personifica alguém à sua altura, através da truculência moral e religiosa, e por que não a física também quando a história pede? O discurso de Noé é inflamado de mensagens divinas, em que somente ele e sua família devem ser salvos e ele leva isso à risca, e que para que o mundo se reestabeleça, voltando a ser um lugar saudável e puro, todos devem pagar e perecer. Essa questão torna o filme rico em discussões, é o ponto forte da nova obra de Aronofsky, é contextual. Até que ponto a religião alega quem é bom ou mau? Até que ponto o extremismo nos leva? Ou melhor, ainda é relevante discutir isso? O espectador provavelmente não acreditará no ponto em que Noé chega para manter sua palavra em relação a Ele. Nem o espectador, nem sua família.

Passada a primeira parte, temos a transição, que é quando a arca é construída, com a ajuda (!) dos gigantes, que até então queriam acabar com a raça de Noé, Aronofsky explica toda a história dos gigantes, mas mesmo assim… Sei não. Efeitos especiais são de extrema necessidade no filme, me arrisco em afirmar que nenhum animal visto no filme é real (claro), com exceção, talvez, do pássaro que viaja verificando terra à vista; é duvidosa também a geografia da arca com relação ao metro quadrado (ou melhor, cúbico) e os animais que ali entram, parece a lógica invertida da hóstia, que parecem poucas, mas são muitas, já os animais parecem muitos, mas lá dentro poucos. Ou talvez seja minha falta de noção espacial.

Noé deixa seu extremismo de lado quando adota uma garotinha, que vira sua filha e faz parte da família, tudo bem que é num momento não muito crítico do ponto de vista dele em relação a sua missão, mas que num futuro breve a tensão será esmagadoramente cruel. A adotada é interpretada pela linda Emma Watson, e sua personagem traz um dos momentos mais clichês do filme, que é quando não consegue dormir e Noé vai lá e canta a música que seu pai costumava cantar para ele. Ela dorme na hora. Cliché demais, não? A música ecoa no filme tempos mais tarde num momento tocante que anula seu prévio clichê.

Mesmo fazendo parte da população boa do mundo, Noé é ciente da maldade em cada um, ele e sua mulher matariam pelos seus filhos, e eles têm defeitos também, que o pai sabe exatamente apontar. E isso, é uma filosofia universal, como a do Yin-yang, por exemplo. Aquela figura mais acolhida, de cabelos grandes, que saía para apanhar alimentos juntos com os filhos, agora está careca, com uma barba maior, pronta para uma iminente guerra. Se colocássemos uma armadura em Crowe, ele seria novamente o General Maximus Decimus Meridius. A personagem de Ray Winstone, Tubal-cain, é fundamental para o conflito do filme, ele quer de qualquer forma invadir a arca, seus ideais de guerreiro e homem são bem contundentes, puxando para o seu lado um membro da família de Noé, Ham (Logan Lerman).

A análise que se pode fazer entre Noé e Ham é acuradamente edipiana, não tanto por causa de uma preferência materna, feminina, mas por causa da figura paterna deve ser morta para que essa forma de poder unitário seja desmantelada; na verdade, esse conflito entre pai e filho, além de ser iniciado pela entrada de Tubal-cain, é apurado depois da morte da futura (ideia inocente de) mulher, de figura feminina, que Ham teria para si. Como Noé pôde? A chuva cai, o caos se instaura, mas antes mesmo a família já estava em grande tensão, eram muitos homens e poucas mulheres, sendo que a personagem de Watson é infértil, a perpetuação da espécie não é um objetivo, Noé deixa claro.

Depois dos eventos, o clima da arca pesa, é a parte boa do filme, já que ele é tão mergulhado em maniqueísmos, o conflito entre os membros da família é cada vez mais patente, uma gravidez impossível é fim do mundo para futuros bebês. A segunda parte do filme impressiona não pela falta de verissimilitude das coisas, mas pelas emoções e incredulidade do que acontecem naquele ambiente, a partir da conduta unilateral que Noé ratifica; Aronofsky acerta na narrativa que Noé conta para os seus familiares, a luz apagada, a criação do mundo, o uso da hip-hop montage. O filme cresce bastante nessa segunda parte, na arca, enquanto a tempestade cai impiedosamente lá fora, engolindo tudo e todos.

Darren Aronofsky, que já fez Pi, Réquiem para um Sonho, Fonte da Vida, O Lutador e Cisne Negro, grandes filmes que inserem o diretor nova-iorquino num hall de cineastas atuais de mérito, se arrisca de uma forma bem ambiciosa em Noé, tendo tido problemas de produção e orçamento e gerado polêmicas em alguns lugares do mundo, mexendo num ponto crítico da história bíblica. Assim como a tempestade de Noé, me questiono se dividiremos a obra do diretor em antes e depois de Noé, não que os outros filmes não deem margem para isso, variando, claro, do gosto de cada um. No final, todos os que são bons sobrevivem, como bem sabemos, seria legal se mantivéssemos essa crença pros próximos filmes do diretor também.

Florianópolis, 12 de abril de 2014

M. B. Massias

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