Os Pajés de Eldorado

O encontro de três irmãos de armas que há muito não se viam. O primeiro conto da antologia Herdeiros da Vida e da Morte, baseada na mitologia brasileira

Rod Zandonadi
Crônicas de Etherion
16 min readOct 10, 2020

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O chefe índio descia calmamente o morro, em cima do seu magnífico corcel negro, um dos mais belos animais a andar por aquelas bandas a anos. Ao longe ele pode ver o local marcado para a reunião.

A nostalgia tomou conta de seu peito quando ele olhou em volta. A última vez que estivera ali… mil anos. O lugar quase não mudou. Aquela parte da floresta ainda era intocada pela ganância dos mortais. Era quase como uma extensão do lugar entre dimensões onde Eldorado, seu lar, se encontrava.

Ele se endireitou na cela do corcel. Não sabia se os índios da região ainda usavam pinturas de guerra. Mas ele era o Cacique dos eldors, e em uma reunião dos Pajés do reino de Eldorado, ele precisava estar com as pinturas douradas à mostra no peito nu. Era uma das obrigações de seu título. Um título que ele não gostava mais naquele dia do que no dia em que o recebeu.

Na primeira vez em que os Pajés de Eldorado pegaram em armas uns contra os outros.

Afastou aquele pensamento enquanto ajeitava o saiote de bronze que vestia. Os colares tribais chachoalhavam duratne o trote lento da montaria. Os cabelos lisos até os ombros as vezes lhe dificultavam a visão, quando o vento os usava para pregar uma peça. Mas ele não se irritava, afinal, os ventos eram amigos. Poucas coisas irritavam o Cacique de Eldorado, reino dos imortais eldors.

Levaria ainda três horas para chegar no lento trote de sua montaria. Ele suspirou olhando para o cavalo. Limpou a garganta algumas vezes, mas o animal se recusou a mexer as orelhas uma única vez.

Uma gostosa brisa acariciava seu rosto. Apesar do assunto que o levava novamente ao lado dos mortais da Floresta Amazônica, ele sorriu. Uma família de lobos-guará passou à sua frente correndo. Garças, gaviões, araras e maritacas voavam no céu azul tingido de nuvens brancas.

Olhando para o sol ele apertou as rédeas. Os nós dos seus dedos ficaram brancos. Não tinha tempo para ser contemplativo, já estava atrasado.

— Hey, meu amigo. Acho melhor dar aquela galopada especial.

O corcel virou a cabeça. Indignação e tédio dançaram nos olhos do cavalo. O chefe índio segurou o riso quando os resmungos vieram:

— Vocês, imortais e seus compromissos. Se tinha que chegar rápido por quê não saiu mais cedo, Tupã?

O cavaleiro ergueu uma sobrancelha e gargalhou, e como reflexo foram ouvidos fortes e poderosos trovões em toda região amazônica. Muitos correram para se esconder da possível chuva que talvez chegasse. Embora os céus estivessem limpos.

— Vocês corcéis dos céus e seu senso de humor. Por quê eu sairia mais cedo se posso ouvir suas piadas e cavalgar a própria luz? Vamos lá, não chamam você de Raio dos Céus à toa.

O corcel rolou os olhos.

— Sorte sua que tenho patas em vez de mãos… Se você não fosse um Pajé…

Dos olhos do corcel negro saíram raios enquanto ele empinava, relinchando aos céus. Sua crina se transformou em chamas brancas e seu corpo brilhou mais forte que o despontar do sol no início do dia.

Tupã gargalhou mais uma vez, agarrando -se à crina de sua montaria. Qualquer homem ou mulher que pudesse presenciar aquela fantástica visão nunca a esqueceria. Mesmo os que apenas ouviram os trovões por toda região norte do Brasil, se lembrariam por um bom tempo da sensação de poder que eles causavam.

Como sempre acontecia quando o elemento que dominava se fazia presente em uma região, o chefe índio se tornou, mesmo que por um breve segundo, onisciente do que acontecia em seu domínio. Sua gargalhada se intensificou quando viu a reação dos mortais ao seu poder. Um padre de uma cidadezinha interrompeu o sermão, engolindo em seco. Um pajé de uma tribo na outra ponta da Amazônia levou a mão à testa em respeito. O chefe de uma vila que era um quilombo há séculos olhou para os céus, fazendo uma prece, embora fizesse para um imortal de outro panteão. Um xamã que instruía indiozinhos no centro do estado disse às crianças que aquilo era a própria personificação dos elementos naturais.

Apenas um segundo depois, quando os pés do corcel tocaram o chão, as limitadas mentes humanas imaginaram que os trovões e o deus por trás dele tinham desaparecido.

Quando na verdade se moveram como a luz.

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Ao chegarem à clareira, viram que não foram os primeiros. Eram aguardados por um homem que aparentava seus vinte anos, assim como o chefe índio.

Havia poucas diferenças entre os dois. Ambos eram altos e musculosos. A pele morena e os olhos puxados fazia com que fossem confundidos com os índios daquela região. Diferente do chefe índio, o caçador usava uma calça e colares no pescoço. O rosto estava cheio de pintura de guerra, como sempre desde o dia em que as tribos de Eldorado foram dispersas pela Amazônia. Os cabelos lisos iam abaixo dos ombros. Como o Cacique, seu peito também era tomado por pinturas, embora essas fossem de animais selvagens, enquanto no chefe índio eram nuvens, ventos e raios.

O jovem estava sentado em um tronco de árvore, usando uma faca para tabalhar em uma pequena peça de madeira. Ao seu lado estavam uma aljava de flechas, um arco, alguns facões e uma machadinha. Todas as armas eram douradas. Armas de um dos poucos que podiam fazer frente à Tupã. Naquela ou em qualquer outra dimensão.

O caçador. Anhangá, Pajé da Tribo das Feras.

— Está atrasado como sempre — ele disse quando Raio dos Céus parou em sua frente.

Tupã mordeu os lábios. Anhangá nunca se atrasava. Mas a observação deixou um certo corcel relinchou insatisfeito.

— Atrasado? Ele disse que eu estou atrasado? Eu chego no horário, amigo. Fale para o mestre do trovão aqui sair mais cedo de casa da próxima vez. Vocês, Pajés de Eldorado, estão testando minha paciência hoje.

O caçador franziu mais ainda o rosto frente ao desaforo do corcel. O desprezo no olhar que dirigia ao recém chegado era só um dos indicativos do seu descontentaento. E aguentar o cavalo mais desbocado dos céus lhe retrucando não ajudou muito a atenuar o clima. Tupã pensou se não teria sido melhor ter ido sozinho.

Ele sabia o motivo da raiva do irmão. Ele acreditava que o título de Cacique devia ser dele, e não de Tupã. Foi o motivo da segunda guerra civil em Eldorado. A razão pela qual Tupã liberou as tribos eldor para viverem como quisessem, segundo os ideais de seus Pajés. O que, contrariando seu julgamento, não uniu os irmãos Pajés, e sim, os afastou de Eldorado.

O deixando sozinho para governar a Cidade Dourada.

Enquanto descia do corcel o chefe índio olhou em volta. Tantos séculos haviam se passado. Uma nostalgia profunda se apossou de seu coração. Mas a convocação que fez não pareceu surgir efeito. Os outros Pajés não tinham aparecido. Respirou fundo, seu peito expandindo e fazendo dançar a tatuagem em forma de raio em seu poderoso peito nu.

— Então eles não virão — falou mais para si mesmo.

O caçador deu um meio sorriso balançando a cabeça.

— Você é mesmo muito inocente, ou muito tolo, achando que eles viriam. Te conhecendo eu aposto na segunda opção.

O Cacique desviou o olhar. Quando as tribos se separaram ele deixou claro que era importante ainda se reunirem. Afinal, a Cidade Dourada ainda era o lar de todos. E uma vez a cada 100 anos, eles se reuniriam ali no seio da Floresta Amazônica. Porém, a cada século ele viu o número dos irmãos diminuir nas reuniões. E pelo jeito, naquele dia seria apenas Anhangá e ele.

— Pelo menos você está aqui — disse o Cacique ao caçador.

O olhar que o Cacique recebeu foi intenso.

— Aqui é meu lar. Sou o senhor das feras selvagens. Protetor das florestas. Enquanto os mortais forem uma ameaça à floresta, eu estarei aqui. A Tribo das Feras estará aqui. Não vamos dar as costas para a vida selvagem como fez Eldorado.

Descendo do cavalo, o chefe índio estreitou os olhos

— Essa não é nossa função irmão.

— Essa não é a sua função. Vou proteger a vida selvagem não importa o…

As palavras morreram na boca do caçador. Estreitando os olhos ele olhou para trás do Cacique, que achou estranho (e engraçado) quando ele os arregalou em seguida.

O chefe índio virou a tempo de ver uma coluna de luz prateada se transformar na mais bela mulher que seus olhos puderam enxergar em todos os seus milênios de vida. Não pôde, ou talvez nem quisesse segurar o sorriso que se abriu em seus lábios.

— Tupã, Anhangá — cumprimentou a jovem mulher que se aproximava. — Faz muito tempo que não somos encontramos. Como têm passado?

Ambos os homens demoraram para responder, pois a suavidade da voz daquela linda índia de cabelos brancos e esvoaçantes os deixaram sem palavras. A formosura delicada de seu corpo coberto pelo saiote e uma camisa de seda hipnotizou temporariamente os dois. As contas prateadas dos colares brilhavam tanto quanto os olhos dela.

— Estou bem, guardiã da noite — respondeu o chefe índio, despertando de seus devaneios. Ele tomou a mão dela entre as suas e a beijou. — É muito bom te ver, Jaci.

— Faz muito tempo realmente — resmungou o caçador. — E não me agrada qualquer que seja o motivo para que ele tenha se abreviado para este momento — Então seu rosto se suavizou. — Mas é sempre uma honra encontrá — la, Pajé da Tribo da Lua.

Ela sorriu para eles, o que não ajudou nenhum dos dois a organizar suas ideias. Mas o fato de Tupã e Anhangá estarem no mesmo lugar era suficiente para acirrar o ânimo entre os dois. O Pajé da Tribo das Feras olhou para o Cacique, ainda hipnotizado pela beleza de Jaci.

— Nossas leis antigas ditam que três é um número apropriado para um concílio. Diga o que quer dizer para que eu possa voltar para meus afazeres.

Suspirando, Tupã desviou sua atenção daquela que já fora a luz da sua noite. Ele se lembrou de uma época distante. Seu peito se apertou ao lembrar que ela não fazia mais parte de sua vida.

Seu olhar se voltou para o caçador.

— Meus filhos estão às vésperas de despertarem seu potencial máximo. A Profecia da Vida e da Morte pode se cumprir a qualquer momento.

O olhar de Tupã traduzia suas emoções ao dizer aquelas palavras. Orgulho por um filho. Tristeza pelo outro. Ele viu que Jaci sentia o mesmo. Como não sentiriam, já que Munam e Zunam eram o fruto do amor que viveram tão intensamente?

— A solução é simples, Tupã — retrucou o caçador voltando a se sentar. Pegou uma flecha da aljava que estava no chão e se pôs afiá-la com uma pedra. — Os dois devem morrer.

Tupã olhou para aquela que já foi a luz de seus dias. A expressão em seu rosto era um reflexo de sua determinação. Ninguém tocaria suas crianças.

— Não posso permitir isso — ele disse irredutível.

Raios brilharam em seus olhos e seus punhos se fecharam tanto que as unhas perfuraram a carne, deixando pingar um líquido dourado. Ícor, sangue dos imortais. Sangue dos que nasceram em Etherion.

O caçador suspirou e guardou suas coisas pacientemente. Se levantou e fitou os dois.

— Vocês sabem que essa é a melhor solução — ele olhou para a guardiã da noite. — Vamos Jaci. Sabe muito bem que tenho razão.

— Talvez você tenha razão, Anhangá— disse a mulher. — Mas o que propõe vai contra nossas leis e contra o que eles podem representar em nosso futuro. Ninguém tocará um fio de cabelo das minhas crianças. Seja homem, animal, fera, eldor ou qualquer outro ser. Aqui na dimensão de Midgard. Na dimensão de Etherion. Ou em qualquer outra das Nove Dimensões.

Tupã acompanhou o senhor dos animais e caçadores avaliar a mulher. Ele sentia quanto a aura de Jaci estava elevada e seu poder, mesmo de dia, era imensurável. Uma das mais poderosas entre os eldors. E o chefe índio… se pudesse lhe fazer frente, ele seria o cacique de seu povo.

O caçador suspirou e Tupã se preparou para defender Jaci. Olhou os dois que já foram companheiros de armas. Deu um raro sorriso triste para eles, algo que desarmou o Cacique. Ele não via um sorriso de Ananhangá desde a batalha na frente do portal que os demônios do Makai queriam construir para invadir seu reino.

Esse foi seu erro, pois enquanto sorria, Annhangá atacou.

Suas mãos pegaram fogo quando ele pulou e socou Tupã no rosto. O senhor do trovão foi jogado para trás, arrebentando algumas árvores.

Enquanto o Cacique se levantava tonto, viu Anhangá se voltar para Jaci. Desespero tomou seu peito por imaginar Jaci sendo ferida. Se preocupou a toa. O irmão traidor não teve tempo de atacar. Muito menos de se defender.

A Pajé da Tribo da Lua estava com as mãos para cima. Seus olhos brilhavam como prata. O céu escureceu e uma bola de energia se formou sobre as mãos levantadas da guerreira.

— Sinto muito, Anhangá — ela sussurrou. Com lágrimas nos olhos seu rosto se tornou frio quando ela baixou as mãos gritando. — Morte prateada.

A bola de energia se tornou um raio lançado na direção do caçador. Ele aparou o golpe com as mãos, sendo arrastado por alguns metros. Quando a energia se dissipou, um sorriso se formou em seus lábios.

— Seus poderes nunca foram páreos para os meus em combate, minha flor.

— Pode ser verdade — rugiu a voz de trovão de Tupã, que se colocou ao lado de Jaci. — Mas me pergunto o que acontecerá quando você receber os nossos poderes combinados.

A cor sumiu do rosto do caçador. Tupã e Jaci ergueram as mãos. A aura dos dois se elevaram. O prata lunar e dos raios se unindo, crepitando, estalando. Tupã bateu o pé no chão e um trovão ecoou junto com seu grito. Tão forte foi o tremor que ele sentiu os mortais das proximidades acharem se tratar de um terremoto. Mesmo que terremotos não ocorressem no Brasil.

Um arco dourado se materializou na mão do Pajé de Eldorado. Ele puxou um fio invisível, que se materializou como puro relâmpago. O mesmo material da flecha que apareceu.

Jaci ajeitou os cabelos. Quando fazia antes das batalhas em que destruía centenas de inimigos. Aqueles eram os momentos em que, para Tupã, ela se tornava mais bela.

— Seu problema é subestimar as pessoas, Anhangá — falou Jaci — . Não é que você seja mais forte que eu. A questão é que nunca me interessei em te derrotar.

A Pajé começou uma dança batendo palmas. O céu, que antes era dia e tinha se tornado noite, se encheu de estrelas. Quando ela bateu palmas uma última vez acima da cabeça, as estrelas vieram ao seu encontro. Raios lunares rasgaram os céus e se colocaram atrás dela. Na forma de lâminas. Espadas finas criadas a partir da luz estelar.

Tupã viu que Anhanguá não arredaria o pé. Os três sabiam que era impossível fugir dos golpes de dois Pajés. Se ele fugisse, estaria condenado. Tristeza martelou o peito do Cacique.

— É sua última chance caçador. Jure não enconstar em nossos filhos, e você viverá.

A resposta de Anhangá foi um urro que fez todos os animais se encolherem em quilometros. Uivos e relinchos encheram o ar. A aura do caçador se expandiu em puro fogo. Formas animais se formaram ao redor dele. Lobos-guará, jacarés, cobras, onças, gaviões. Todos envoltos em chamas.

— Vingança Amazônica! Chamas do lamento das feras — gritou o caçador.

Jaci baixou a mão.

— Agulhas estelares. Destruição Lunar!

A aura de Tupã se elevou ainda mais. Ele venceria. Por Jaci. Por seus filhos. Por Eldorado. Pelo futuro. A energia do Cacique se transformou em um clone dele mesmo, feito de puro relâmpago.

— Flecha da aniquilação prateada!

Os fundamentos da Terra se abalaram quando o poder de três dos maiores guerreiros imortais entre os eldors dispararam em direção uns dos outros. Os animais em chamas de Anhangá contra as agulhas estelares de Jaci e as flechas de raios de Tupã e seu clone de raios.

As chamas dos animais crepitaram. As agulhas de prata zuniram. Os relâmpagos das flechas estalaram. O encontro das energias transformou a pequena clareira em uma cratera. De longe parecia uma explosão nuclear.

Silêncio.

Enquanto a poeira baixava, os Pajés se encararam. Jaci e Tupã não gostaram do meio sorriso e do olhar satisfeito e orgulhoso de Anhangá. Um feito digno de canções e histórias, sobreviver ao ataque de dois iguais. O Cacique não quis apontar o fato das mãos do irmão estarem tremendo. Nem que seria preciso pouco, a julgar pela quase inexistente aura que ele sentia do caçador, para acabar com sua existência naquele momento.

Duvida assolou os pensamentos de Tupã. Conhecia bem o irmão de armas para saber que ele tentaria todo tipo de subvertígios para acabar com suas crianças. Aquela talvez fosse sua única chance de acabar com ele. Ali, enquanto estava debilitado. Ele encontrou os olhos de Jaci e soube que não conseguiriam fazer aquilo. Não destruiriam um Pajé, responsável pela vida de tantos eldors que escolheram ficar no lado mortal da Floresta Amazônica.

— Não pensem que estou só em minha posição — falou Anhangá. — Tenho aliados. Aliados poderosos que estão interessados em não deixar essa profecia se cumprir. Alguns deles deixarão vocês tão surpresos… E nada posso fazer se eles ficarem, digamos… descontentes.

Tupã suspirou.

— Se nos unirmos e apoiarmos os garotos, temos uma chance muito maior de…

— Esqueça Tupã — cortou Jaci — , veja o olhar dele. Está disposto a causar uma guerra civil entre os eldors, se for preciso.

O chefe índio buscou o olhar de Anhangá. O que viu ali o convenceu de que Jaci estava certa.

— Porque? — ele perguntou ao irmão.

— Porque? — debochou o caçador. — Você tomou o que eu mais queria. Tirou o título de Cacique de minhas mãos. Agora eu vou tomar o que você mais ama. E não me importo de Eldorado ficar em ruínas para me divertir com seu sofrimento. Só então acabarei com sua vida.

Tupã sorriu para ele. Ele percebeu que aquela não era a expressão que Anhangá esperava diante da ameaça que fez.

— Faça o que tem que fazer então, Homem Fera — disse o chefe índio.O caçador tremeu e bufou ao ouvir seu mais odiado apelido. Isso não passou despercebido por Tupã — Se você tem aliados, nós também temos. Ou se esqueceu de que uma de nossas irmãs Pajés só não está aqui porque tem laços em Etherion com o Império Nascente e o Olimpo? Não nos subestime.

— E mais uma coisa — falou Jaci apontando o dedo para ele. Seu olhar frio e penetrante, como a lua em uma noite nublada e sem estrelas — , lembre-se bem das minhas palavras. Não haverá dimensão em que você possa se esconder, mundo em que não te encontrarei se algo acontecer com meus filhos. Nada te esconderá da minha ira. Eu Jaci, juro por meu sangue.

Jaci materializou uma adaga dourada e o caçador engoliu em seco. Ele arregalou os olhos quando a guardiã da noite cortou sua mão, deixando o seu sangue dourado escorrer para o solo. Tupã pegou a adaga e repetiu as palavras dela, também cortando a mão.

Anhangá recuou um passo. Depois outro. Ele olhava do caçador para a guardiã da noite, e foi quando as coisas fizeram sentido para Tupã. Seu irmão não esperava um confronto com os dois, esperava lutar apenas com ele. A presença de Jaci mudou tudo. Ela, que não tinha aparecido nas últimas duas reuniões, foi uma surpresa para ele também. E pelo visto, frustrou os planos do irmão, pelo menos por um tempo.

O líquido dourado borbulhou no chão e se tornou pó dourado. Os céus aceitaram o juramento dos dois.

O silêncio que se instaurou foi mortal. Cada lado analisava o outro, ciente de que o próximo passo decidiria o impasse.

Tupã piscou algumas vezes quando Anhangá extinguiu sua aura. Ao seu lado, Jaci franziu as sobrancelhas, tão confusa quanto ele.

— Como um gesto de boa vontade pelo tempo em que lutamos lado a lado contra Cuca, demônios e tantos outros perigos, vou lhes dar a chance de mudarem de ideia e lutarem ao meu lado — Anhangá falou. — Podemos impedir a destruição de tudo. Antes mesmo que ela comece.

Tupã inflou o peito, fazendo o raio tatuado ali ondular.

— Não vou lutar contra meus filhos.

— Nem eu — concordou Jaci.

O caçador deu de ombros. Mas o chefe índio pegou um pequeno brilho de tristeza em seus olhos.

— Então, pelos velhos tempos, lhes digo que Gamab é um dos que se colocaram ao meu lado. Eldorado já foi aliada dos Khoikhoi, mas não contem mais com isso. Se algum eldor que não pertence à Tribo das Feras for pego por essas bandas, encontrará seu fim.

Com um último olhar para os dois ele se transformou em uma grande onça pintada. Rosnou para os irmãos e correu pela cratera, pegando fogo e desaparecendo.

Tupã e Juci ficaram em silêncio por um bom tempo. Ele se lembrou de muitas coisas, de eras passadas. De quando ainda vivia em Etherion, lutando na guerra do Olimpo contra Otris. Do dia em que Zeus os baniu de Etherion. Da construção de Eldorado. As lutas contra Cuca e os Khoikhoi. A chegada da filha de Zeus e da filha do Império Nascente que se tornou uma irmã. A guerra contra os demônios. A divisão das tribos eldors.

Ele já tinha passado por muitos problemas. Mas nenhuma delas era pior que não ter mais Jaci ao seu lado.

Mas o tempo é um engraçado trolador, Tupã pensou. Ele prega peças nas pessoas e faz com que suas prioridades mudem. Hoje eles ainda se amavam. Ele sentia isso só de estar ao lado dela. Mas o mais precioso para os dois eram os frutos que aquele amor tinha gerado. E eles os protegeriam com suas vidas.

Se despedindo de Jaci com um aceno, o chefe índio assobiou. Em poucos segundos Raio dos Céus chegou (embora Tupã não tenha percebido quando ele se ausentou). O corcel reverenciou a guardiã da lua e permitiu que o chefe índio o montasse.

Tupã observou sua amada lhe dirigir um sorriso triste. Ela se transformou em uma coluna prateada e desapareceu. Ele piscou e engoliu em seco, com a saudade apertando seu peito. Raio dos Céus deu um relincho suave, como se entendesse a dor do Cacique.

— Vamos para a guerra, não é? — perguntou o Corcel.

O lider dos eldors respirou fundo, como se, ao prolongar o tempo daquela resposta, aquilo não se tornasse uma certeza.

— Sim, meu companheiro de eras — disse enfim. — Vamos à guerra. E quando ela acabar, pode ser que Eldorado não passe de ruínas e lembranças.

O corcel partiu em um trote lento. Havia pouco tempo para os preparativos. Pela segunda vez na história dos eldors, haveria uma guerra civil. E o chefe índio tinha medo de como ficaria a natureza quando essa guerra terminasse.

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Rod Zandonadi
Crônicas de Etherion

Escritor e entusiasta de literatura de fantasia. Desenvolvedor Web nas horas em que não estou criando mundos fantásticos.