Uma Noite no Bar — Herdeiros da Vida e da Morte
Uma Noite no Bar — Herdeiros da Vida e da Morte

Uma noite no bar

Quando uma simples noite onde dois irmãos se encontram para tomar umas bebidas marca o início de uma guerra há muito declarada por seres tidos como deuses

Rod Zandonadi
Crônicas de Etherion
9 min readNov 17, 2020

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Os Pajés de Eldorado é o primeiro dos contos dos Herdeiros da Vida e da Morte. Relata um encontra entre o cacique de Eldorado, Tupã, e dois pajés de Eldorado, Jaci e Anhangá, e como os três eldors discordam sobre o papel que os protagonistas desse conto, Munan e Zunan, terão nos dias que virão.

Para ler o primeiro conto, basta acessar o link abaixo.

Os Pajés de Eldorado — Herdeiros da Vida e da Morte

A página com todos os contos dos Herdeiros da Vida e da Morte está aqui:

Página — Herdeiros da Vida e da Morte

— Hey, Lipe. Manda mais uma dose pra mim — ele me disse virando seu quarto copo.

— Que bom que veio aqui afogar sua mágoas, assim não precisei virar a cidade te procurando — Falou o recém-chegado se sentando ao seu lado.

O rapaz olhou com o canto do olho seu vizinho de balcão e bufou, sem falar nada por alguns momentos.

— Como coisa que essa pocilga que você chama de cidade tivesse mais que dois bares decentes para se passar o tempo. O Gogó do Carneiro, do Lipe aqui, tem a melhor cachaça de General Cordeiro — retrucou erguendo o copo para mim em um brinde.

— Pode ser — disse o outro encolhendo o ombro. — Você não deixa de ter razão nisso. Salve Lipe. Que Jaci ilumine suas vendas — disse me cumprimentando.

Nós três éramos velhos amigos na infância. Eu apenas sorri erguendo a mão e balançando a cabeça para aquela benção, que ao mesmo tempo em que era tosca, me dava um aperto no peito.

Maldita idade, nos deixa sentimentais. E minha raça não é das sentimentais, os curupiras é quem são os melosos nessas bandas.

Paro de filosofar quando o rapaz ri da benção.

— Você continua ridículo com essa história de bênçãos e tradições da tribo.. Lipe, traz uma dose para esse cabeça oca também. Quem sabe ele deixa de ser tão piegas.

Aguardei a resposta do recém-chegado.

— Aceito a bebida, mas ser fiel às raízes não é ser piegas, Munan.

Como sabia o que essa conversa renderia eu fui pulando pegar mais bebidas enquanto ele continuava a falar.

— É nosso dever como últimos da tribo preservar o quê…

— Uma tribo morta — ele foi cortado, como eu sabia que seria. — Uma tribo que não existe mais. Esquece isso de uma vez por todas Zunã.

— É nosso legado, irmão. Podemos repovoar General Carneiro, reconstruir a tribo. Restaurar a honra dos boe, fazer o Brasil reconhecer os índios otuque!

Voltei e servi mais bebidas, inconformado. Todo ano mesma coisa. Encostei na geladeira velha e continuei secando uns copos. Logo os nossos raríssimos clientes habituais chegariam, então eu precisava de uns cinco a dez copos limpos.

— Um legado morto, maninho — disse descontando toda a raiva dando um tapa no balcão, me tirando dos meus devaneios.

Eu apenas suspirei. Não devia nem estar vendendo bebida para um cara de 17 anos, mas Munan era alto e forte. Sua cabeça raspada e a cicatriz do incêndio que marcou nossas vidas do lado direito do seu rosto lhe davam um ar mais velho, podendo passar por uns vinte e cinco anos tranquilamente.

E poucos eram os que sabiam que ele tinha bem mais do que isso.

— Cara, reconsidere meu pedido. Um legado é um legado, só morre se deixarmos isso acontecer. Eu tenho planos, e desde quando conversamos pela última vez…

— E só os céus sabem o quanto eu gostaria de que aquela fosse realmente a última vez.

Silêncio.

Zunã me olha e por um momento meu coração se aperta. Ele não mudou nada, a mesma melancolia presente em cada olhar, como se cada respirar fosse um fardo maior que carregar o peso do mundo. Ou, no caso dele, de mundos. Acho que é o que lhe dava esse ar atemporal.

— Você recebeu minha carta, Lipe?

Afirmei com a cabeça.

— Então entende o que está em jogo. Nossos pais…

Rapidamente Munã agarrou a gola da camisa de Zunã, tamanha a vilência que ouvi o som de pano rasgando. Seus olhos e punhos escureceram, já que não conseguia se controlar quando seus pais adotivos eram mencionados.

Suspirei novamente para a longa noite que viria.

— Não ouse falar deles.

Os olhos arregalados e a boca aberta de Zunã revelavam outra faceta que não tinha mudado: medo. Eu só não sabia se era medo do seu irmão ou dele mesmo. Eu sempre tive mais medo dele do que dos acessos de fúria de Munã.

Seus olhos brilharam. Seu corpo emitiu um brilho alaranjado. enquanto sua expressão se transformava e o homem medroso dava lugar a alguém confiante que intimidava mais que a fúria do irmão.

— Hora de você me largar — disse colocando sua mão sobre a de Munan e apertando.

— Desgraçado — retrucou ofegante enquanto o irmão tirava sua mão da camisa como se nada fosse, logo a soltando.

Os dois se olharam em silêncio.

Aos poucos as estranhas manifestações que eu já conhecia desapareceram, deixando ali dois garotos ofegantes de ascendência indígena: um com o suor escorrendo por sua careca e o outro com os lisos e finos cabelos estilo Papa-Capim ensopados.

Em silêncio eu coloquei mais duas doses de Germana Caetano’s na mesa. Ambos as pegaram e beberam em um único gole, para então se sentaram.

Silêncio.

— Já fazem dez anos que eles se foram — a voz triste de Zunã se fez ouvir pouco mais alto que um sussurro.

— Eles podiam ter feito alguma coisa — ralhou Munã.

A princípio pensei que ele se referisse ao governo, que nada fez quando a aliança de fazendeiros declarou guerra à tribo. Mas Zunã apenas balançou a cabeça.

— Está acima deles, irmão. Eles não podem interferir.

Sim, eles falavam deles. Dos que deviam proteger. Aqueles para quem eles clamaram e dançaram dia e noite antes de seus pais serem chacinados.

- Isso é papo de deuses em mitos, irmão. Eles não são deuses, são só seres poderosos que podem fazer a diferença no mundo, e não fazem. Que nada fizeram quando os branquelos ultrapassaram a linha de guerreiros e entraram em todas as ocas para estuprar nossas mãe, primas e tias.

— Sim, mas…

— Sem mais! Pare de defendê-los. Já foi, passou. Agora só nos resta a vingança!

Cada palavra era acentuada por um gesto furioso das mãos, ficando mais frenéticos conforme o garoto quase homem colocava para fora tudo que estava guardado dentro de si.

Eu não podia culpá-lo pela raiva que ele sentia. Eu sentia o mesmo.

Respirando fundo por alguns segundos, Munã falou com uma calma fria, e embora ele olhasse para baixo eu sentia que ele falava direto na minha alma.

— Eu me lembro da sensação de pavor. O desespero de ouvi-las gritando, morrendo por dentro antes de serem mortas por tiros e facadas. E nós trancados no chão, em um buraco embaixo de uma oca pegando fogo.

Lembranças. Dizem que elas doem na alma e o corpo apenas reflete tal sofrimento interno. A julgar pelo tremor do corpo dele, Zunã estava além da dor; ele se encontrava no desespero.

Virando para o irmão, que assim como eu, tinha os olhos banhados por lágrimas, ele continuou.

— Eu encontrei os responsáveis pelo massacre da vila.

Silêncio. Profundo e sombrio silêncio.

— Com você ao meu lado nós podemos destruí-lós antes que se dêem conta do que está acontecendo. Juntos nós podemos honrar nossos pais, Zunã.

— Irmão… já fazem dez anos. Deixa pra lá. Vamos tentar um caminho novo, de restauração. Me ajude e honraremos os dois, papai e mamãe.

Eu me lembrava dos pais deles. Os adotivos, que os criaram na tribo. Vi os pais deles nascerem, vó casarem e vi quando esses dois foram entregues. Foi uma de minhas irmãs quem os levou para a tribo.

Munã então mostra a mão direita para Zunã.

— Lembra disso? — Questiona mostrando a cicatriz que cobria toda a palma da mão. — Lembra de quando eu jurei por todos os males da humanidade que me vingaria? Pois bem, você sabe que eles me atenderam.

Ele fechou o punho que escureceu novamente. Tive vontade de me esconder. Entrar embaixo da cama e chorar, de bater a cabeça na parede até desmaiar, tamanha a sensação de desespero que me afligiu. Só não fiz nada disso graças a Zunã.

Ele mostrou a mão direita, a mesma cicatriz em uma mão que brilhava alaranjada. Ao olhar aquilo percebi que a vida fazia sentido. Que o medo existe, mas podemos encontrar coragem para combatê-lo. Valia a pena viver.

— A escuridão da noite trará a vingança, irmão — disse Munã.

— É a luz da vida o equilíbrio e a redenção — respondeu suavemente Zunã.

Contrariando a lógica, eles juntaram as mãos marcadas e um trovão gigantesco ecoou nos céus.

— Que o juramento de sangue jamais se afaste do coração onde a coragem nasce — disseram juntos, e sorriram.

Esses filhos de deuses não batem bem da cabeça.

Munã então soltou a mão do irmão. Pegou a jaqueta jeans no banco ao lado do seu e colocou nos ombros. Colocou um bolo de notas no balcão, com um valor suficiente para pagar o aluguel dos próximos doze anos.

Então acenou com a cabeça e saiu.

Acompanhamos ele com o olhar, e mesmo depois de um bom tempo ainda olhávamos para a porta.

Suspirando, Zunã levantou. Colocou outro bolo de notas sobre o balcão. Eu já tinha cansado de sinalizar a eles que não precisava, mas eles o faziam todos os anos, com todos nós, os sobreviventes da chacina.

— Acho que o dia mais triste da minha vida se aproxima, Lipe. Se meu irmão levar a cabo sua vingança, os sete males do mundo se erguerão e o controlarão. Será um caminho sem volta.

Silêncio, até porque eu não podia falar. Como falar sem língua?

— As vezes me pergunto se ele não está certo e eu agindo como um tolo. O governo não fez nada nos anos 70 para proteger a tribo boe, por isso fomos chacinados. E hoje em dia fazem no papel, a realidade é que os fazendeiros detêm o poder. Penso se não seria melhor usar meu poder ao lado dele, mas não é isso que foi traçado nos céus.

Eu o encarei com a pergunta no olhar. Não precisava falar para que ele entendesse, ele entendeu.

— Não sei velho amigo, não sei se conseguirei impedi-lo. E tenho medo do que terei que fazer caso não consiga.

Bati com o punho fechado no peito. Eu entendia.

Ele respirou fundo.

— Nossos pais fizeram o que podiam. Sem a luz de Tupã eu não poderia me opor à escuridão dos sete males que se impregnou em Munã. E é a escuridão da noite de Jaci que mantém o poder dos sete monstros trancafiado e sob controle. Mas se ele matar… se derramar sangue que não seja em defesa própria…

Suspirei. Seria ruim, muito ruim.

Ouvi barulho do lado de fora e rapidamente guardei os maços de dinheiro. Zunã sorriu, triste como sempre.

— Vou deixá-lo trabalhar em paz, meu amigo. Mas creio que eu fique por aqui mais tempo dessa vez. Que a luz de Jaci lhe ilumine.

E dizendo isso ele se foi, perdido em pensamentos, carregando o fardo de dois mundos. E eu fiquei ali torcendo para que meus amigos não chegassem às vias de fato.

O destino é cruel. De uma noite em que Tupã e Jaci se amaram, ele se vingou e fez renascer no fruto desse amor os filhos dos primeiros homens: Marangatu — o líder generoso; e Japeusá — o caranguejo mentiroso.

Meus amigos herdaram tudo de bom e ruim deles, e isso os coloca um contra o outro.

Eu não sabia qual lado escolher caso a natureza entrasse em guerra consigo mesma. Mas não adiantava pensar no futuro. Para um velho saci como eu, basta cada dia seu próprio mal.

Suspirando eu peguei meu cachimbo para relaxar e fui pulando para os fundos. Dava tempo tirar um cochilo antes dos bêbados desse lado da cidade começarem seus pedidos.

Olá gente!

O que acharam? Espero que tenham gostado! Não deixem de comentar!

E se você curte mitologia e fantasia, não deixe de ler meu primeiro romance: A Filha do Tempo e os Descendentes de Etherion, completo no Wattpad. Tem muitas criaturas da mitologia brasileira por lá.

Abraços e até a próxima!

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Rod Zandonadi
Crônicas de Etherion

Escritor e entusiasta de literatura de fantasia. Desenvolvedor Web nas horas em que não estou criando mundos fantásticos.