A felicidade do abandono

Ou: Deixar de viver de costas e ser homem terra

Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS
3 min readMay 11, 2018

--

Uma nuvem de poeira vermelha sobe no ar depois de colocar o pé direito para fora da camionete velha. Um passo para fora e a última tragada de cigarro antes de continuar o caminho diário. Escuta o silêncio daquele lugar fugidio, lugar que foge do mundo, lugar sob seus pés. Ele acompanha, homem passageiro.

Sol no céu, a Lua insiste em fazer-se presença, o toco de cigarro no chão. Terra vermelha, terra roxa, terra fértil. Os olhos percorrem a imensidão que consiste em horizonte e presente, cotidiano daquele trabalho. De sua vida misturada à terra pisada, da terra plantada.

Daqui dá para ler o futuro, ele sabe, porque o futuro chega a cada passo que dá e a terra que sobe junto da botina escreve no ar o que há de ser do futuro: hei de baixar, sou pó e ao pó voltarei. Ele e a terra, fuga e permanência.

É possível ver no modo como anda a satisfação em estar ali. A firmeza ao andar, a possibilidade de se entregar um passo de cada vez, assim é possível desenhar o sentimentozinho no peito que ele passou a chamar de felicidade do abandono.

Ali, com o cheiro de mato entrando nas narinas, ele se permite abandonar-se: chapéu e calça jeans, liberdade de quem viveu por muito tempo uma vida de costas e, por fim, deu-se por cansado e decidiu abraçar o clichê: adeus, grande cidade, escritório e gravata apertados dentro de um quadrado com o ar condicionado a sufocar. Adeus. Toda a condição feita para ser sufocamento resfriado, propósito de ser grande dentro do seu quadrado. A gravata, enfim, impedindo que fosse gigante, o pescoço que foi, talvez, espécie de calcanhar de Aquiles, cabelo de Sansão. Ele sem forças, homem evoluído, sem maiúsculas, estômago doendo, sono descontrolado — a insônia de ser importante.

Então, em uma noite desperto, a imagem de si de botas, suor na testa, as unhas cheias de terra. Vira em um filme? Ou ele próprio desenhou a imagem para si, talvez recebera um chamado? O remédio atuou como senhor do destino? Continuou a acordar e a vestir a gravata, usar a camionete limpa no lava-jato ao lado de casa. Continuou até que não continuou mais, afinal é assim que a felicidade do abandono nasce. Foi quando decidiu abraçar o clichê.

“Adeus, adeus”, anunciou. “O que?”, responderam rindo. “O que? Você só pode estar maluco. Vai se cansar”, diziam. “Não aceitou o fim do casamento”, denunciaram. “Crise de meia idade”, diagnosticaram.

Sabia que não havia romantismo nisso, renunciara muito mais do que ao ar-condicionado. Sabia que não seria possível negar nada do que havia sido e estado até então — não, a pele denuncia: cada marca de expressão possível porque tinha sido o homem que foi. Fosse outra história, as marcas seriam diferentes, não é assim? A pele entrega a leitura de passado, presente e futuro para quem deseja ver: não são necessários ciganos. O tempo roça histórias na pele. Planta histórias na pele.

Sabia que a vida — havia muito — cravava marcas de quem era. Ele e a terra, lugares varridos pelo tempo.

Assim, já portador de tantos sulcos, foi buscar o lugar para viver o que tinha de viver, não importava o diagnóstico alheio. Buscou o lugar que seria homem, talvez com maiúsculas, e não mais condicionado. Lugar. Ele próprio, lugar fugidio e permanente. Ele mesmo, lugar ideal. Foi viver ali, lugar que nasceu para viver. Lugar antes tão distante.

As botinas pisando a terra vermelha, o sol rolando no céu sem nuvens. O toco de cigarro no caminho já distante. Olhou rapidamente para os pés e, sem grandes explicações, se lembrou da frase do poeta.

“Tantos pisam este chão
que ele talvez um dia se humanize.”

“E eu também”, pensou em espécie de oração. As pernas sorrindo, pisada firme. Sabia, homem terra que era.

*Frase de Carlos Drummond de Andrade

--

--

CRÔNICAS
CRÔNICAS

Published in CRÔNICAS

Crônicas para instigar. Contos para envolver. Ficção para entreter.

Dedo de prosa e poesia
Dedo de prosa e poesia

Written by Dedo de prosa e poesia

Crônicas, contos, resenhas e rabiscos. Por Ana Lis Soares.