A grandiosa lei universal das pequenas coisas
Porque toda dádiva é sutil
“Não serei mais um pobre diabo que sofre de nobrezas” — Manoel de Barros
Este mundo é uma ferrenha contradição. Ou somos nós, miseráveis, que distorcemos a essência das coisas. Eis: a simplicidade é a fortuna do mundo. Um pouco diferente que o antigo provérbio da tradição judaica, que diz que Deus está nos detalhes, digo: Deus está no ínfimo.
Aqui uma das tantas provas. Passeando com meu cachorro, eu, como nunca temi, na avenida escura, dez da noite, sendo meu bairro um dos mais perigosos, segundo o que acredita a maioria dos moradores, vou de encontro com a senhora. Não um bandido, um estuprador, um maníaco, assim como imagina encontrar na rua, uma hora dessas, essa gente adoecida e enclausurada em seus apartamentos, obsessivas por segurança e aniquiladas pelo medo, como são meus vizinhos de bairro. Mas uma simples senhora. Estatura baixa, pernas e braços curtos, roliça como são as senhoras nordestinas, com a voz e o sotaque típico, veio brincar com o cão. O bichinho, curioso, mas assustado que só ele (já disse quanta coisa boa ele deixa de experimentar por causa desse medo), ficou ciscando as patas na calçada, sem saber se se aproximava ou afastava. Adorou o bicho: “ô, coisa linda, cê tá passeando, é? Ô, meu Deus, como você é lindinho”, repetia enquanto reagia igual a ele: ciscava sem saber se passava a mão ou se era melhor não. Enquanto o farol não fechava para poder atravessar, ela não calou um segundo o gracejo com o bichinho: “Mas é muito lindo, né mermo? ‘Como eu sou fofo, meus Deus’”. Tão carinhosa que já falava pelo cachorro, assim como todo dono faz com seu animal de estimação.
Aliás, um parêntese: quem nunca criou as falas do próprio animal de estimação, como se ele falasse, agisse e pensasse como um humano adulto, ainda não chegou no estado de demência afetiva, crucial para a relação entre homem e pet, que é esse curioso caso de se falar pelo próprio cachorro, por exemplo. É demência afetiva por dois motivos: primeiro pela própria ideia infantilizada de atuar por um animal que, além de desprovido da capacidade de falar, é igualmente desprovido da capacidade de entender o que você está falando. Verdade que há coisas que eles entendem. Mas é pelo tom de voz e expressão do dono, e nunca — óbvio — pelo significado. Para fechar o espetáculo do ridículo — mas lindo! — gesto, o segundo motivo: além de tudo, a fala que criamos ao nosso próprio bicho de estimação vem acompanhada de uma voz ainda mais ridícula. Realmente, ridículo e lindo. Lindo porque ridículo.
Enfim, a senhora. Neste meio tempo de aproveitar para brincar com meu cachorro e esperar o sinal fechar, foi uma das pessoas mais simpáticas que vi na vida. De tão singelo que foi o momento, qualquer outra descrição em palavras o desmereceria. Sei que, ao sinal fechar, foi atravessando a rua, arrastando os chinelos. Tinha também um lenço sobre a cabeça e amarrado ao queixo. Fazia frio, a vestimenta era simples, mas estava agasalhada. De chinelo e meia, foi arrastando os pés pela avenida, em passo mais rápido, preocupada ao atravessar, um pouco assustada, como são as senhoras ao atravessarem avenidas (as desgraças desses caminhões fazem um barulho infernal ao brecarem e são um tormento na vida de senhorinhas de bem).
Mesmo assim, não deixou de se despedir. Bracinhos curtos, a mão com dedos pequenos fazendo tchau, primeiro ao cachorro: “beijo, menino, boa noite”. Depois pra mim: “tchau, rapaz, boa noite e que Deus abençoe!”. Menos de 40 segundos de convivência, eu e meu cachorro completos desconhecidos a ela, e as palavras proferidas pela boca dessa senhora foram: lindo, flor, boa noite, Deus, menino, rapaz. Sim, esqueci de dizer que, em um memento, ela falou flor. Referindo-se às sobrancelhas salientes típica dos schnauzers. “E essa sobrancelha dele? Coisa linda, parece uma flor nascendo”.
Esse momento foi impregnado pela fortuna da simplicidade. Logo que me pus a andar, depois de acompanhar ela com os olhos atravessando a rua, tive a audácia de achar que, se eu fui capaz de ver a felicidade naquele momento tão simples, é porque eu era o homem mais feliz do mundo. Mais tarde, passado o êxtase do momento, baixei minha bola. Eu não era o homem mais feliz do mundo, mas mantinha a certeza de que naquele momento, e em outros que rotineiramente me acontecem, sou capaz de sentir o que sente o homem mais feliz do mundo.
Nas pequenezas da vida, como o encontro espontâneo e aparentemente trivial com a senhora na esquina escura, ou na íntima e, insisto, ridícula voz de humano que damos aos nossos bichos, encontrei verdadeiras fontes de plenitude. E percebo que, com o tempo, o êxtase pelas inutilidades vem tomando meu espírito com cada vez mais força. No fim de um dia passado, voltando do trabalho, me peguei quase babando, estático ao acompanhar o caminhar de uma família enorme de formigas. As pessoas me estranhavam, mas eu nem pude notá-las, tão inerte e penetrado eu estava ao observar o trabalho dessas operárias da terra e das pequenas folhas.
Chafurdar, chafurdar, e perceber que o poço da plenitude vive nos mais simples e delicados instantes. Pois comprovo que vi a face real da alegria em todas as coisas que hoje consideramos pífias, insignificantes. Agora me diz uma coisa: se a prova é de que a simplicidade é a maior das dádivas, porque erramos tanto ao querer encontrá-la nas coisas grandiosas? Será o mundo essa brincadeira de contradição que nos faz enxergar errado? Ou somos nós, pobres bestas, que insistimos em traçar o paraíso no longe e no inalcançável, sem ter a feliz e sutil percepção de que o paraíso vive, a todo momento, bem embaixo dos nossos olhos?
Senhoras, cachorros, momentos pífios e insignificantes me provam: a maravilha do mundo acontece quase sem a gente perceber.