© David Cohen

A morte do cisne

Melíflua
CRÔNICAS
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4 min readFeb 5, 2017

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Quando completara seis anos, sua avó lhe dera uma caixinha de música com uma bailarina lá dentro. A caixa era quadrada, feita com uma madeira maciça de boa qualidade, de cerne castanho avermelhado e um odor muito leve, sem entalhes no exterior, além de duas depressões horizontais que contornavam todo o perímetro da caixa acima e abaixo da linha de corte da tampa. Os espelhos eram colados à tampa, três espelhos unidos verticalmente por dobradiças para criar o efeito de profundidade no reflexo.

A caixa era dividida em três seções, duas para armazenar joias e a do meio para acomodar a bailarina deitada. Ela tinha a mão esquerda apoiada na cintura, o outro braço acima da cabeça e a sua saia era feita com uma renda da cor salmão, que talvez tenha chegado a esse tom por causa do tempo. A bailarina tinha o cabelo todo preto, a pele branca e os lábios vermelhos e sua avó dizia que era como a linda netinha dela.

Mas as duas se pareciam muito mais agora que a cor da pele desvanecia e os olhos apagaram-se. Ainda assim, era obrigada a dançar ininterruptamente toda vez que alguém abria as portas do seu mundo repentinamente, sempre de maneira abrupta e rude, sem perguntar ou dar uma batidinha antes, e ela se punha a rodopiar, o braço direito começava a doer, mas não podia abaixar, o braço não se move, atenção para os dedos, pescoço reto, queixo pra frente, a música vai começar de novo, abaixe os ombros, só os ombros, o braço fica lá em cima, estica a coluna, estica, sustentação no abdômen, e de novo, oito tempos, levanta o quadril, cadê o en-dehors? Mais uma vez e um e dois e três e quatro e gira e gira e gira e gira e um e dois e três e quatro e gira e gira e gira e gira e um e dois e três e quatro e gira e gira e gira e…

A nota final soou como um estalo seco.

A bailarina deixou o palco atormentador e amputou as próprias pernas. Agora não precisaria dançar para mais ninguém.

Acabou.

Quando abriu os olhos, os ponteiros do relógio apontavam, juntos, para o número doze, mas ela não seria capaz de dizer qual das possibilidades de horário era a correta. Ficou um longo tempo ainda, deitada, tesa, com o olhar fixo no teto acima de si, consciente de que sua respiração só poderia significar duas coisas: fantasmas respiram, apesar da inutilidade de tal movimento, ou ela continuava viva, e seu plano não funcionara. Deixou-se seduzir um pouco pela ideia de que a além-vida era muito parecida com sua própria vida até perceber que isso seria tão ruim, ou pior, quanto ter continuado viva. Socorro. O sentimento de fracasso era ainda mais pesado agora. Você só tinha uma tarefa.

Portanto, não viu motivos para sair da cama. Talvez os agentes não tivessem tido o tempo necessário para fazerem efeito. Talvez, se ela ficasse ali, imóvel, conseguisse dormir de novo — e dessa vez, para sempre. Ironicamente, a esperança resolveu que não a abandonaria agora que ela estava completamente desesperançosa. Não se moveu um milímetro e esperou.

Quando abriu os olhos, os ponteiros do relógio apontavam, vizinhos, para o número seis, e ela virou o rosto para a janela para tentar saber qual das possibilidades de horário seria a correta. Era possível ver um leve e trêmulo brilho amarelado através das folhas da veneziana, mas poderia ser a luz dos postes da rua. Tanto faz.

Um carro.

Dois, portão.

Três, chave.

Acabou.

— Comprei morangos, estão docinhos.

— Fiquei uma hora tentando cruzar a avenida perto daquela faculdade, uma hora, você acredita?

— O mercado estava cheio, o que deu nesse povo de querer comer logo agora? Me passe esse queijo aí pra eu guardar e chame sua irmã pra comer.

— Eles ainda não depositaram o décimo terceiro, mas disseram que vão colocar até semana que vem.

— Você deu comida pros gatos? Coitados, estão morrendo de fome. Pega aquela carne na geladeira.

— Amanhã vou almoçar com meus amigos da faculdade.

— É aniversário da sua madrinha. Ela chamou a gente pra ir na casa dela.

— Me passe o leite, por favor.

— Não posso desmarcar agora.

— Você deveria saber quando é o aniversário dela.

— Agora eu sei. Cadê o café?

— E você dormiu o dia todo, foi? Eu sabia, ainda bem que não conto com você pra me ajudar aqui, porque se eu dependesse de vocês, eu tava ferrada.

— Já decidiu o que você vai fazer no ano que vem?

— Claro que não, ela acabou de acordar, não sabe nem que horas são agora. Me passe a faca aí.

São sete e vinte e quatro.

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