A multiplicação dos homens brutos

Adriano De Luca
CRÔNICAS
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8 min readJun 27, 2017

Até o três eu fui muito bem, três vezes nove, vinte e sete, três vezes dez, trinta. Eu estava orgulhoso e aliviado, mas nunca confiante. Nunca porque o meu oponente inspirava medo. A possibilidade do erro causava calafrio. É preciso atenção se você está sendo interrogado. O problema é quando se é menino, ainda. Com que força você pode enfrentar psicologicamente um inquisidor? E foi na tabuada do quatro que eu escorreguei, quatro vezes cinco, vinte, quatro vezes seis, vinte e…dois? Seis? Vinte e…e eu já não sabia mais nada. Meu estômago deve ter gelado — a mesma sensação de ouvir uma freada busca de carro. Só que um estômago gelado, mais tarde, pode virar vulcão. Vinte e…dois, né? Percebo um silêncio que vem lá de dentro do banheiro, seguido de um suspiro de insatisfação. Pela fresta da porta escapa uma luz amarela, e posso imaginar meu pai sentado no vaso com cara de bravo. Os azulejos do box ecoam sua sentença:

- Mas esse menino já não tinha decorado tudo?

// CORTA //

A área de serviço está escura, é pequena e faz muito frio, mas é ali que eu me refugio segurando o celular com a mão em concha para aumentar a propagação do som que sai do microfone. “I said pressure drop, oh pressure / Oh yeah, pressure gonna drop on you / I said, and when it drops, oh you’re gonna feel it / Pressure, pressure, pressure, pressure”. Não posso aumentar muito o volume, então sussurro a letra da música, tento cantar no mesmo ritmo do Toots and the Maytals, danço sozinho num cubículo de quatro metros quadrados apinhado de caixas, panos úmidos pendurados sobre a minha cabeça e areia do gato espalhada pelo chão. Mexo o corpo freneticamente, com os olhos fechados, bato o joelho na bancada, tropeço num chinelo, mas não me incomodo. Eu poderia estar sob o efeito de um momento muito feliz, curto e agudo, satisfeito quem sabe com um baseado na mão, ou seria um picote de ácido debaixo da língua?, ou as quatro cervejas de trigo potencialmente mais alcoólicas que um vinho chileno?. Nada disso importa, aquele momento é meu, ninguém pode entrar na minha redoma, ninguém sabe o que eu estou pensando, quem estou odiando, de quem sinto falta, da culpa que não se cala. Quantos sambas eu poderia compor na duração daquele reggae? Quantas válvulas de escape mais eu poderia buscar de uma só vez, pra que tudo implodisse com a velocidade da luz, pra que toda uma galáxia começasse a se formar dentro da minha alma? — porque pra fora nada pode sair. É tarde, o horário não permite explodir, Marcella e João dormem, e o celular superaquecido continua grudado na orelha. “Pressure gonna drop on you”.

//CORTA //

- Abre a boca, filho. Abre. Abre essa boca, caramba!

Enquanto escovo os dentes do João, que sempre teima em fechar a mandíbula e morder as cerdas, chupando a pasta docinha, percebo que o seu primeiro dente de leite está mole. Empurro com o dedo, tem uma folga, deve levar mais algum tempo até cair.

- Filho, acho que tem um dente mole aí.

Ele dá um grasnado de alegria, mal seca a boca e sai correndo pra sala. Conta pra Marcella, e pergunta da Fada do Dente, se vai trazer chocolate ou moeda, e que legal, que demais mamãe. A maioria das crianças da sua turma na escola já está de janelinha, e acho que com isso ele se sente parte, a coisa do pertencimento que pra ele é uma questão, ou talvez seja apenas a excitação pela Fada do Dente, essa criatura que pouco entendo, que pouco admiro, que dá dinheiro e açúcar em troca de dentes miúdos.

Mesmo assim, enquanto seco a escova do Bob Esponja, me dou conta de como esse dente é simbólico. João está trocando sua carapuça, está aprimorando suas armas para enfrentar o mundo. Como um menino que treinou por anos com uma espada de madeira, e agora se prepara para entender o próximo passo, a nova fase da guerra, como morder, bater e retrucar, como ficar ainda mais forte e ágil, para então, um dia, receber do mestre a espada de aço. João como que troca de pele, a cobra se estica, a cigarra escapa. João é um menininho, não é mais um bebê. E eu fico pensando como ele vai fazer pra se virar num campo de batalha maior, com suas crises de carência, de ansiedade, de ciúmes. E então, pá. Por que diabos eu estou olhando pra tudo isso sob a ótica bélica? Certamente por influência de um estado psicológico absolutamente meu. Quem sabe esse dente não é um amuleto, um ingresso para uma experiência mais profunda, um pequeno portal de cálcio para o autoconhecimento do João? Um patuá, que eu como pai levaria amarrado no pescoço. Mas um dente é só um dente. Não somos bárbaros.

//CORTA //

Como disse meu médico homeopata, “você precisa estar atento àquilo que alimenta sua alma”. Em meus exames mais recentes, descobri uma úlcera cicatrizada, o que me deu certo orgulho — ela se curou sozinha, resisti à dor sem precisar de nenhum patuá (meus dentes caíram faz tempo). Só que carrego comigo uma gastrite e esofagite persistentes. O estômago e todo o sistema gástrico em ebulição. Qualquer crise emocional se aloja ali, e o que era um frio na barriga, com o passar dos anos, vira um vulcão feroz. De todas as checagens no corpo, talvez essa foi a que mais me assustou, sem contar a confirmação de uma situação hipersensível do meu organismo — ele está sempre se defendendo, o que faz de mim uma pessoa bem alérgica, explicando o nariz entupido constante e a asma noturna. “Como anda a música na sua vida?”, ele me perguntou. Que tipo de médico te pergunta isso numa consulta?

Já perdi a conta de quantas vezes prolongo-me por alguns minutos dentro do carro, na garagem do escritório, com os faróis apagados e o rádio ligado no talo, só pra deixar terminar aquela música, que afinal parece ser a única coisa que me dá forças para abrir a porta e entrar no elevador bombardeado de luz branca, espelhos com marca de dedo, gente de gravata e blazer, hálito de café matinal e televisores que mostram, em drops, os gols da rodada, a situação financeira do Brasil e a dieta moderna que te faz emagrecer em uma semana.

“We were young, darling / We don’t have no control / We’re out of control”. Os vidros do carro tremem, o manobrista tenta me enxergar através do insulfilm, eu escorrego a bunda no banco pra me esconder. “I don’t wanna change your mind / I don’t wanna waste your time / I just wanna know you’re alright / I’ve got know you’re alright”. Julian Casablancas força o gogó e me devolve pros anos 2000. O que alimenta minha alma?

//CORTA //

Estou de bermuda florida e sem camisa. Sinto cheiro de churrasco (meu nariz ainda funcionava), o som está sempre ligado, meus ombros estão queimados. O olhar marejado de juventude, de irresponsabilidade, de uma leveza estúpida. Meia dúzia de meninões, selando suas amizades mais duradouras que resistiriam (será?) ao tempo, ao trabalho, às doenças, à família, aos filhos. Quem estaria ali, velando por nós, protegendo-nos de nós mesmos, de nossas lambanças, de nossas festas sem limites, de nosso machismo, de nossa homofobia, de nosso preconceito, de nossa coxisse, de todas as drogas e bebidas? Estariam nossos pais a nos observar à distância, preocupados em suas camas, esperando uma chamada no celular? Foi um tempo pra se anestesiar, concluiria minha terapeuta. Não havia nada de bom que pudesse ser visto pelos meus olhos, naquele momento. Foi um tempo de ligar o automático e me entorpecer. “Foi a saída que você encontrou inconscientemente, meu caro. Não dava pra ficar parado, e você reagiu, ao seu modo”. A desculpa de ter perdido o pai com dezessete anos será sempre uma boa desculpa porque me bota numa situação de café com leite, “ô tadinho, que barra” — mas não me exclui do mundo e nem me exime dos erros. Eu fiz tudo aquilo porque eu quis. Porque eu podia. Porque eu tinha vinte e poucos anos e, de certa forma, era bom viver. “You are young, darling / For now, but not for long / Under control”. Trôpego, conto os cigarros que restam no maço. “Porra, Didi, traz o cigarro!”. Dois, só tem dois! Somos em seis. Dois dividido por seis? Teria que multiplicar pra dar certo. O som está alto demais, o metabolismo do corpo não sabe pra onde correr, qual glândula deve agir primeiro para neutralizar tantas substâncias nocivas. Pelo menos mais uns oito cigarros pra cada um, seria o mínimo até o fim do churrasco. Seis vezes oito. Espera. Quatro vezes seis. Vinte e…? Dois?

- Mas esse menino já não tinha decorado tudo?

//CORTA //

Ele agacha, levanta os braços, pula, sai correndo pelado, faz careta, dá cambalhota. Não consigo vesti-lo.

- Filho, se você bagunçar de novo, vai se trocar sozinho. É isso que você quer?, pergunto, severo. Bruto.

- Não.

João, quando está triste, engorda os olhos. Sei, parece estranho. Mas é a melhor forma que encontrei para descrever seu rosto. Seus olhinhos ficam mais redondos, meio inchados, e é a prova de que ele se magoou. Uma luz divina (só pode ser isso) se acende no meu coração e eu consigo repensar, voltar atrás, tentar entender. Ele só é feliz e está se divertindo. Começo:

- Filho, eu não quero ser bravo, nem chato, nem brigar com você. Não é de propósito, tá? Acontece que eu tenho pressa de manhã, preciso te trocar rapidinho.

- Por quê?

- Porque eu preciso deixar você na escola, correr pro trabalho. Hoje é sexta, amanhã por exemplo não tem aula e a gente pode brincar, mas hoje é um dia que eu tenho que resolver um monte de coisa chata.

- Um monte?

- Um monte filho. Ser adulto tem um monte de coisa chata.

- Então você não pode brincar sempre?

- Eu posso às vezes.

- Mas ser adulto não tem nada de legal?

- Eu gosto de andar de bicicleta com você, no sábado vamos andar juntos.

- E desenhar também? E brincar de adivinhação?

- Isso mesmo. E aí você pode até bagunçar na hora de trocar de roupa, porque aí eu não terei pressa. Mas hoje eu tenho, estou atrasado, e preciso que você me ajude a ganhar tempo. Belezão?

- Belezão, papai.

E os olhinhos dele voltam ao normal. Ele baixa os braços e eu coloco a camiseta nele. Tomamos café felizes, e até gargalhamos quando ele espirra e a meleca cai na banana cortada em rodinhas.

//CORTA //

Os vidros param de tremer, eu abro a porta do carro. Caminho até o elevador como uma múmia programada. Fecho os olhos pra não dar bom dia pra ninguém, e dentro da minha cabeça a música recomeça, minha mão em concha, tropeço no pote de ração do gato. É preciso alimentar a alma para desembrutecer o coração. Cheguei, sétimo andar.

“I say, and when it drops, oh you’re gonna feel it / Oh, that you were doing wrong”.

//CORTA // CHEGA //

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