A sombra na calçada

Leandro Marçal
CRÔNICAS
Published in
2 min readFeb 15, 2018
Muito concreto, pouca alma. Foto: BioMercadoBrasil.

Vi a sombra cobrir o ponto de ônibus e me senti com o saudosismo das tias, contando histórias de quando trocavam minhas fraldas quando eu cabia no colo. A mancha escura no chão me impedia de respirar o sol daquela manhã quente. Vi o crescimento desse conjunto intimidador de prédios desde as primeiras pedras.

Lembrei o tempo em que seus incontáveis andares não tinham sido paridos, só existiam nos embriões dos panfletos distribuídos por moças e senhoras a cada sinal vermelho. Só era possível perceber seus inúmeros porteiros com câmeras nas entradas do estacionamento labiríntico nas propagandas em bicicletas, pedaladas por moços em formação e senhores com uma casa de gente simples para sustentar.

Olhava um carro do ano parado à frente do portão eletrônico se abrindo e atrás dele o trânsito buzinando. Aquela pequena brecha era o máximo que podia ver da construção gigantescamente brega. Seus moradores nem precisam sair de lá. Academia, salão de jogos, churrasqueira e piscina. Dizem haver uma padaria lá dentro, não acredito. Mas me pergunto se a eles se aplicam as mesmas leis do mundo aqui fora.

Para tomar vitamina D antes do serviço, precisava avançar dois quarteirões até outro ponto de ônibus. Nós, que dividimos ombros, cotovelos e sovacos no transporte coletivo, dificilmente entraremos num lugar daqueles sem um convite para festas chiques. Eles nem devem saber que existimos, tampouco conhecem a paisagem da minha cidade, tão surrada de uns anos para cá.

Daqui não posso ver a quadra da escola e o morro da outra avenida. Ainda prefiro o pequeno prédio de cinco andares onde sei o nome do porteiro, dos vizinhos de andar. Posso chegar ao meu apartamento de escada para matar o sedentarismo.

Os arranha-céus também rasgam o coração dos moradores antigos. Nem sei como se entra a pé. Não desejo viver naquela dimensão paralela. Queria mesmo era ter a cidade de volta, como era antes. Teria que dobrar a cabeça para trás e inclinar as costas para ver o topo dessa construção feia, mas desejada por quem entende pouco da verdadeira beleza.

Preferi olhar de lado e fazer sinal para me afastar daqui o mais rapidamente possível. O ônibus chegou e fiquei feliz por me sentar nos últimos bancos, do lado em que o sol batia.

--

--

Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).