A voz do Tempo

Uma das descobertas mais importantes da história se torna também a mais estranha. E o destino da humanidade pode estar enterrado nas areias do próprio tempo.

Rodrigo Teixeira
CRÔNICAS
22 min readSep 28, 2017

--

Ilustração de Rodrigo Teixeira.

Extraído do Diário do Professor Howard Carter.

12 de dezembro de 1922.

A arqueologia deveria nos preparar para tudo. Quando se escava um sítio no meio do nada, como eu estou fazendo, devemos estar propensos a aceitar o que quer que brote do meio do solo, grande ou pequeno, belíssimo ou insignificante. Jovens sempre sonham com grandes e pomposas descobertas, mas de fato, isso raramente importa. Se veio do passado, tem algo a contar. Eu vivo dizendo isso a meus alunos, a meus amigos. Mas creio que desta vez, minhas mais profundas convicções foram postas à prova.

Depois de anos cavando areia e mais areia, sendo interrompidos pela guerra, sofrendo debaixo deste calor insuportável, sendo devorados por insetos maiores que meus punhos, colhendo resultados quase pífios, e prestes a perdermos nosso patrocínio, meu time finalmente encontrou a sonhada tumba de Tutankamon.

É estranho perceber que, após tanto tempo de busca exaustiva, nosso sucesso tenha acontecido quase por acaso. Quinze dias atrás, um dos garotos encarregados de nos trazer água tropeçou num canto vivo no meio das escavações. Um canto que certamente não deveria estar ali, no meio do nada. De fato, bastou cavar poucos centímetros para termos certeza de que estávamos à frente de algo especial. Ao fim do dia já podíamos divisar o arco principal da entrada da tumba.

Tão logo tive certeza da dimensão da minha descoberta, mandei chamar Lorde Carnarvon, para que ele pudesse estar presente à abertura da câmara que conteria os restos mortais do Jovem Faraó.

Removemos todo o material que se acumulava na espécie de antessala interior, deixando exposta a porta que certamente levaria ao sepulcro no faraó. Resolvi somente abrir aquela passagem na presença de Lorde Carnarvon. Para mim, era uma questão simples de respeito para com ele. Afinal, apesar das recentes ameaças de corte nos proventos, ele acreditou durante anos neste projeto. Não o culpo. Houve momentos em que mesmo eu senti que estava perdendo tempo. E que talvez devesse abandonar a aventura e aceitar de uma vez por todas o cargo como agente da Universidade de Cleveland. Por pouco não o fiz.

Nosso benfeitor chegou dias depois, e estava tão excitado com a descoberta que quis ir direto a ela. Eu suspeitava que o cansaço da viagem não permitisse tal proeza, mas ele parecia ter 20 anos a menos, tamanha sua disposição.

Sob o escrutínio de fotógrafos que ele trouxe consigo, eu rompi o lacre do sarcófago. E nem a minha mais otimista previsão poderia me preparar para o que encontramos dentro. Milhares e milhares de tesouros, em perfeito estado de conservação. O sarcófago, ao centro, é lindíssimo, ricamente ornamentado. Tantos e de tamanha variedade são os achados, que creio, levaremos anos para concluir seu catálogo total. A história da egiptologia com certeza não será a mesma depois desta descoberta.

Mais tarde, fizemos uma grande comemoração no bar do hotel em que Lorde Carnarvon está se hospedando.

Ele participou dos primeiros dias de catalogação das peças, depois foi embora. Creio que fará contato com museus a fim de decidir para onde mandaremos toda a coleção.

Passei então a trabalhar nos ítens com um grupo reduzido e selecionado. Para falar a verdade, não confio totalmente no povo daqui, e muitas peças são pequenas o suficiente para serem escondidas em bolsos e reentrâncias de roupas. Não quero perder nada, estou supervisionando pessoalmente cada achado.

Tudo corria dentro do esperado. Até que na última tarde de quinta-feira, encostado sobre outros objetos, um recipiente em forma cilíndrica me chamou a atenção. Tinha cerca de 30 centímetros de largura, e mais grosso do que minhas mãos poderiam abarcar. Era liso, provavelmente moldado em pele de animal revestida de algum tipo de verniz, de forma a deixá-lo rígido. E tampado.

Ao tentar abri-lo percebi que estava realmente lacrado a vácuo, uma técnica que não me constava que os egípcios tivessem ciência. Para ter acesso ao conteúdo fui obrigado a romper um anel de cola âmbar que se acumulava em torno da espécie de tampa. De dentro, deslizou um grande rolo de pergaminho, muito liso, muito mais bem acabado do que qualquer outro que eu tivesse antes visto. O mais estarrecedor, e que desde então tem me trazido imensas dores de cabeça e surpresa, viria em seguida.

Ao desenrolar o pergaminho, encontrei uma enigmática mensagem escrita em tinta vermelha.

Em inglês.

E não em inglês arcaico, mas inglês corrente, até mesmo corriqueiro. Como se não pudesse piorar, em letra de forma. Já não acreditava naquilo que tinha em mãos, quando a história ficou ainda mais implausível. O manuscrito era endereçado a mim.

Na primeira de suas muitas linhas escritas, logo que desvelei seu conteúdo, li:

“Ao Professor Howard Carter, por ocasião da descoberta da tumba do Faraó Tutankamon”.

Não conseguia acreditar no que estava vendo. Interrompi a leitura naquele momento. Não queria tomar parte em algum ardil ou troça preparados por algum embusteiro de plantão.

Dediquei todo o fim daquele dia a tentar, discreta mas firmemente, descobrir quem havia violado a entrada para a câmara. Minha investigação resultou em nada. Não havia sequer indício que levasse a crer que alguém tivesse posto os pés ali dentro.

Ainda incrédulo, mas sem divulgar o achado a mais ninguém, resolvi terminar a leitura do pergaminho, sozinho em meu quarto naquela noite. E me deparei com um enigma maior do que qualquer esfinge poderia me oferecer.

A seguir, transcrevo aquilo que encontrei:

“Ao Professor Howard Carter, por ocasião da descoberta da tumba do Faraó Tutankamon.

Caro Professor,

Se as pesquisas que fiz estiverem corretas, esta carta deve chegar às suas mãos no momento certo. Espero ainda poder confiar no que os livros de história dizem. Imagino que esteja saboreando uma vitória pessoal. E sei que a própria existência desta carta talvez esteja lhe causando desconforto e surpresa. Peço por favor, que não se sinta assim.

O mérito da descoberta é todo seu. Não é minha intenção diminuir-lhe. Seus achados serão estudados por muito tempo ainda, e sua seriedade servirá sempre como um exemplo para a comunidade científica.

Peço desculpas pela minha intromissão numa hora tão única, mas tento alcançar o senhor com um assunto de grande gravidade e perigo para toda a humanidade. Aliás, para toda a existência.

Antes, me apresento. Meu nome é Charles Hassoum, sou inglês, tenho atualmente 45 anos, e escrevo de dentro dos meus aposentos no palácio cujo dono o Senhor acaba de encontrar os vestígios: Tutankamon. Ele, que será conhecido como o Faraó Menino. Estou imerso na comunidade Egípcia há algum tempo. Já não consigo estimar em que ano estou, mas com certeza em algum ponto por volta de 1320 a.C.

O Faraó tem por volta de 16 anos, e ainda não sabe, mas morrerá em breve. Tenho servido como conselheiro de seu pai, Akhenaton, desde que cheguei. Uma figura odiosa. Foi mostrando técnicas e tecnologias desconhecidas para eles que galguei meu posto. E é por ter este posto que consegui esconder esta carta.

Mas estou me adiantando.

Para que meu propósito com o senhor fique claro, eu preciso começar do início. Ou talvez o início, neste caso, seja o fim.

Preste muita atenção, Sr. Carter. As informações a seguir serão certamente confusas, mas vitais para sua sobrevivência, e possivelmente de todo o planeta. Perdoe-me se não mantenho um tempo verbal único para meu relato. Como o Sr. vai perceber, presente, passado e futuro já não fazem muito sentido para mim.

Em 18 de maio de 2035 o primeiro viajante temporal apareceu nas imediações de uma cidade do Brasil chamada Sorocaba. Havia um motivo lógico para ele ter chegado ali, que explicarei logo mais. Ele se chamava Mark Jagadeep, inglês com ascendência indiana, com um Phd em física Quântica pela Universidade de Cambridge.

Logo que chegou, ele foi confundido com alguém atentando contra o pudor. A viagem não permitia, e nunca permitiu, o transporte de nenhum material que não fosse vivo, e portanto o Doutor Jagadeep precisou viajar nu. Quando chegou ao seu destino, foi preso.

O Dr. Jagadeep será o criador do primeiro aparato capaz de romper o tecido temporal. Ele havia escolhido aqueles arredores porque precisava de um local ainda sem construções, mas que fosse próximo de um grande centro. O receio era se materializar no meio de uma estrutura, que resultaria em sua morte. Quanto ao país, deveria ter uma quantidade razoável de fundos, mas que fosse maleável na aplicação e na criação de novas leis. A escolha foi a cidade de São Paulo, no Brasil, que em 2035 é uma megalópole que se estende até as fronteiras da já citada Sorocaba.

Dois dias depois de sua chegada ele foi solto, e por ser muito persuasivo, conseguiu uma audiência com o prefeito. Ele tinha um plano.

Durante a conferência com o político, o Dr. expôs sua condição de viajante temporal. Explicou que vinha de 2085. E que havia feito uma viagem só de ida.

Professor Carter, neste momento, apesar de entender que várias das tecnologias que apresento aqui não serão descobertas por muitas décadas ainda, preciso que o Sr. entenda alguns conceitos:

1) A princípio, a única maneira de se viajar no tempo é para trás, para o passado.

2) Uma vez que um indivíduo regride no tempo, a única forma para se retornar ao ponto de onde saiu, é através do uso de um Porto Temporal. Este porto nada mais é do que uma ligação quântica, um canal entre as duas épocas. É uma construção cara e complicada, mas uma vez tendo as pontas entre as duas épocas abertas, a viagem torna-se mais simples e segura.

3) Nunca será possível caminhar para frente no tempo além do momento onde a primeira máquina temporal foi construída. Ou seja, só seria possível viajar até o ano de 2085 e os anos subsequentes a ele, enquanto o aparato permanecesse intacto.

O objetivo do Dr. Jagadeep, portanto, era convencer o prefeito da cidade a autorizar a construção de um Porto Temporal naquela época. Ele tentou mostrar ao político as grandes possibilidades da viagem no tempo.

O prefeito, lógicamente, tomou o Doutor por um lunático.

Consta que o prefeito caiu na gargalhada, achando que tudo não passava de um chiste, e mandou seus seguranças retirarem o homem dali. Antes que o alcançassem na sala, porém, Jagadeep percebeu algo, e exclamou sorrindo:

- Não há mais necessidade. Obrigado pela sua paciência.

- Como assim? — indagou o prefeito.

Jagadeep o explicou então, que jamais faria uma viagem de tal sorte sem ter um plano B. E que antes de deixar o ano de 2085, tinha deixado ordens para seus auxiliares. Caso não retornasse àquele momento em 2 horas, eles deveriam voltar para épocas ainda anteriores, e tentar, eles próprios, a autorização para a construção do Porto (missão que no fim, foi cumprida por mim mesmo, na mesma cidade, 20 anos antes).

- Olhe para fora, Sr. prefeito — disse Jagadeep, vitorioso. — O Porto foi feito há 15 anos.

Hoje se sabe que o processo de retroalimentação de memórias criadas por linhas temporais alteradas demora às vezes alguns instantes a fazer efeito, especialmente nesses primeiros tempos, quando ninguém aceitava a existência dessa dimensão. O prefeito continuou olhando para o Doutor, completamente confuso, quando subitamente seu cérebro foi inundado pelas memórias que não tinha vivido. Em instantes ele “lembrou” que sim, o Porto Temporal havia sido concluído há 15 anos, e a estação ficava na praça em frente à prefeitura.

Usando o Porto, o Doutor Jagadeep pôde retornar à 2085. Na verdade, quando ele chegou, já vínhamos sendo visitados há anos por nativos de 2015 em diante, pois o turismo temporal revelou-se como algo lucrativo e importante.

Em seus primeiros anos de operação, as estações temporais foram usadas basicamente pela comunidade acadêmica. Foi somente através do intercâmbio de cientistas de 2085, e técnicas que não existiam em 2015 que pudemos livrar o planeta dos piores efeitos do aquecimento global.

Num primeiro momento, posso dizer que o futuro melhorou muito graças aos avanços em viagem temporal. Mas com o passar dos anos, e muitas melhorias feitas em ambos os extremos do Porto, as viagens tornaram-se quase tão simples quanto as de avião. Isso, na verdade, pode ter sido nosso primeiro erro. Tudo ficou fácil demais.

Com o sucesso, vieram fundos. E com os fundos, a equipe cresceu. A partir daí, a equipe passou a viajar para anos anteriores, firmando novos contratos para construção de mais e mais portos em diversos lugares. Em 2093, tínhamos portos em 30 países, alcançando o ano de 1932.

O Doutor Jagadeep se tornou dono da maior fortuna do planeta. E isso aconteceu em 1976. Ele acabou sendo o primeiro ganhador do Prêmio Nobel de Física e Economia ao mesmo tempo, pelo advento da viagem em si, e pelo trabalho de criação da Fugit, a primeira moeda aceita em qualquer época, e em qualquer país do globo.

O turismo temporal se transformou num grande negócio. A princípio, somente milionários eram capazes de pagar os custos extremos das viagens. Mas com o tempo, mais e mais pessoas viajavam para conhecer seus parentes antes de nascerem, conhecer lugares que mais tarde haviam sido destruídos pelo progresso, assistir premieres de espetáculos dos quais eram fãs.

No começo, o turismo foi severamente regulado, para que tudo aquilo que fosse alterado no fluxo temporal não colocasse em risco os tempos posteriores. Leis internacionais foram criadas para garantir que o negócio continuasse sem oferecer riscos. E uma agência policial com atuação global foi instituída para fazer valer essas leis. Chamava-se ITB (International Time Bureau).

Essa polícia funcionou bem, coletando dados e evitando planos de redirecionamento histórico, quase sempre voltado para o assassinato de líderes mundiais e fraudes financeiras. Mais de 70% desses planos envolviam o assassinato ou salvamento de um homem que o Senhor infelizmente ainda vai conhecer, chamado Adolph Hitler.

Mas como todo plano perfeito, ele tinha brechas. E nosso plano de um “tempo sem tempo” também foi por água abaixo.

Depois de muitas tentativas fracassadas, a China conseguiu desenvolver sua própria versão do Porto Temporal, em 2105. E de forma muito mais barata. Isso terminou por sobrecarregar todo o sistema até um ponto em que a ITB não dava mais conta de regular.

Pouco tempo depois, aconteceu, no ano de 1985, a primeira gravidez resultante da relação entre uma moça desta época e um rapaz de 2020. A garota, de 16 anos, chamava-se Lana Turner, e vivia na Califórnia com seus pais. Ele, um skatista Anglocoreano chamado Raphael Cho.

Lana Turner deveria ter conhecido Robert Michaels na faculdade, em 1993, casar-se com ele e engravidar dois anos depois. Como teve a criança com o Sr. Cho, acabou não entrando no ensino superior. A consequência disso foi a eliminação completa da linhagem que seria a família da senhorita Turner. Cerca de cento e vinte pessoas simplesmente deixaram de existir. Enquanto noventa outras, que foram geradas como produtos do casamento do Sr. Michaels com a nova esposa, simplesmente apareceram. Note que não estou usando a palavra “morreram”. Ela não se aplica ao contexto. Como elas não chegaram a nascer, não poderiam ter morrido.

É ainda mais complicado do que você pode pensar, Sr. Carter. Pois a vida simplesmente seguia. Em instantes, toda a população afetada pelas mudanças temporais experimentava a retroalimentação temporal e se tornava ciente de toda uma vida que não tinha vivido da primeira vez. Mais alarmante do que isso ainda: o processo físico da retroalimentação modificava em instantes a estrutura das memórias das pessoas e a própria fisiologia do cérebro. Para lidar com essa metamorfose, a hipófise liberava diversas endorfinas. Isso mostrou-se extremamente prazeroso. Em outras palavras: o processo era viciante.

Todas as tentativas de regulação falharam. As visitas temporais fugiram completamente ao controle. As pessoas já não mais morriam. O termo adotado era “cessar”. De um momento para o outro, sem deixar nem mesmo vestígio de sua existência, pessoas deixavam de existir.

Em 1995 foi realizado o primeiro casamento entre pessoas de tempos diferentes, entre um famoso cantor dos anos 1960 chamado Jim Morrison e Gigi DelRey, uma modelo nascida em 1992. Casaram-se bêbados em Las Vegas, e decidiram morar nos anos 1990 na cidade de Seattle, pois o Sr. Morrison tinha interesse em um movimento cultural emergente a esta época.

A partir deste ponto, a vida tornou-se complicada demais para se tentar acompanhar. Tudo mudava o tempo todo, e de alguma maneira, o mundo se adaptava. Vivia-se muito intensamente, pois todos sabiam que a qualquer momento poderia-se deixar a existência. O consumo de drogas caiu vertiginosamente, pois nada se comparava à retroalimentação, que acontecia cada vez com mais frequência.

Mas o impensado aconteceu justamente pelo fato da polícia ter evitado tantos atentados. Foi tamanho o empenho em manter Hitler vivo, que ele mesmo construiu em segredo sua versão do Porto Temporal, ajudado por cientistas alemães. De posse dessa máquina secreta, Hitler mandou um espião em missão suicida, e assassinou Winston Churchill antes que ele se tornasse um líder. Sem este empecilho, tomou toda a Europa em 1940, e instituiu um regime nazista, que cobriu de medo e vergonha o planeta.

O futuro das viagens temporais ficou ameaçado, já que Hitler deixou ordens expressas de proibir qualquer construção a partir de então.

O que Hitler não contava era com o poder de adaptação do ser humano. Em 2025, ainda antes da concretização de seu estratagema, um rapaz, fruto de diversos relacionamentos ultratemporais, chamado Estevan Juanes teve um surto durante um processo de retroalimentação. Entrou em colapso, e foi levado às pressas para um Hospital em La Paz. Ele passou dias desacordado. Quando finalmente despertou, Estevan se lembrava de tudo.

Do seu presente, do seu passado, e de todas as linhas que havia vivido até então.

Depois de extensas baterias de exames, descobriu-se que ele era o primeiro de muitos. Um ser humano imune aos efeitos das mudanças em linhas temporais. Não me pergunte como, Sr. Carter, eu na verdade sou astrofísico. Mas aparentemente, alguma mutação nas células destes humanos, algum hormônio que começou a ser secretado durante as retroalimentações os tornou resistentes. Estevan Juanes é tido como o primeiro Extemporal a surgir.

Não demorou nada até cientistas descobrirem que os Extemporais eram as pessoas ideais para trabalharem como agentes da ITB. O recrutamento foi pesado, quase obrigatório. Meninos e meninas Extemporais eram descobertos e cooptados muito cedo pela ITB, e ali eram treinados para lidar com todo tipo de anomalia e crime temporal. Eles eram os únicos que podiam restaurar um acontecimento ao seu padrão original, ter ciência disso, e não serem afetados.

A ITB funcionou por muito tempo, sempre com ações ultrassecretas. Se firmou como uma agência sem nação, operando com fundos próprios, que conseguia por meio de uma presença discreta e cuidadosa nas bolsas de valor.

Em 1998 um homem bomba destruiu um Porto Temporal, em Bangkok. A ITB descobriu mais tarde que um Sheik multibilionário, de uma das mais radicais alas do islamismo estava por trás do atentado. O que não foi descoberto na época é que este Sheik, através de engenharia reversa, usando agentes infiltrados na reconstrução do porto, teve êxito em construir um porto independente.

O plano do Sheik era tão diabólico quanto óbvio. Ele pretendia mandar viajantes temporais suicidas em viagens somente de ida, para matar Jesus Cristo antes dele se tornar um ícone. Ele acreditava que desta forma garantiria a supremacia do Islamismo no mundo.

Viagens temporais carregam todo tipo de incógnita. Mas pelo menos esta possibilidade já havia passado pela mente do Dr. Jagadeep quando ele concebeu o projeto da máquina. Para evitar este tipo de ocorrência, o Doutor embutiu, discretamente, na própria formulação da equação que permitia a viagem temporal, uma trava.

A máquina só permitia viagens até a virada do século XX. O Doutor acreditava que viagens mais longas poderiam causar danos profundos demais na sociedade. O limite imposto era próximo da revolução industrial, onde o ser humano, de uma forma ou de outra, já entendia certos conceitos de produção e tecnologia. As máquinas construídas em conformidade com o projeto original somente exibiam opções de destinos já homologados por agentes, limitando o risco de desmonte total da civilização.

Mas ainda que uma terceira parte construísse uma nova máquina, baseada no projeto do Dr. Jagadeep, a viagem não seria possível. E na verdade, poderia ter consequências graves. Foi o que aconteceu com esta réplica da máquina criada pelo Sheik.

O plano dele era, para início de conversa, mal pensado. Consistia em mandar um extremista na viagem sem volta (já que no ano 1 não havia um Tempo Porto), executar Jesus Cristo, e aguardar por uma super retroalimentação, que mudaria todo o mundo, e que, em sua fantasia, transformaria todo o planeta numa grande nação Islâmica. Como o envio dos homens não causava mudança na realidade, ele mandou nada menos que 22 homens para morte, até perceber que seu plano não estava funcionando.

Até hoje não se sabe exatamente o que pode ter acontecido com estes homens.

O estratagema do Sheik pode não ter funcionado. Mas seu sucesso em montar a máquina se espalhou rapidamente pelo submundo. A ITB começou a seguir diversas pistas apontando na venda de projetos de máquinas para donos escusos. A velocidade que as notícias chegavam deixava a todos temerosos.

As autoridades mundiais se viram na obrigação de responder à crise, mas não sabiam o que fazer. Aqui e ali, apareciam acusações contra uma ou outra nação de alguma época, que estaria agindo em conluio com terroristas e bandidos. A desconfiança quanto às viagens temporais só aumentava.

O primeiro resultado dessa crise foi o desmonte de diversos Portos. Mas esses fechamentos somente tornaram a situação mais tensa, pois vários aconteciam somente em uma época, mas permaneciam funcionando em outras, anteriores e posteriores. Além do mais, já tínhamos famílias multitemporais, pessoas extemporais, empresas que faziam importação e exportação de produtos de diversas épocas. As proibições não foram bem aceitas pela sociedade. Protestos explodiram em diversos países e épocas.

Estávamos a um passo da primeira guerra temporal mundial.

Neste ponto, o professor Jagadeep não estava nem um pouco satisfeito com o que sua invenção tinha se tornado. Ele havia criado a viagem temporal na esperança de ser um instrumento de esperança e correção de erros da humanidade, e ela estava rapidamente se transformando num palco de guerra por vaidades e sandices de grupos querendo mais dinheiro e poder.

Depois de muito ponderar, ele chegou a conclusão de que precisava fazer alguma coisa para consertar a confusão que ele, ainda que inadvertidamente, havia ajudado a criar.

Jagadeep sabia que para que as coisas funcionassem da forma certa, era preciso tempo. Um minucioso plano foi criado e posto em andamento. Quando fui chamado, a maior parte dele já estava em curso.

Em primeiro lugar, o professor me revelou uma grande descoberta, que ele estava mantendo a sete chaves. Agindo de maneira completamente incógnita, ele havia recrutado geneticistas, biólogos e pesquisadores notáveis de diversas épocas, e os apresentou um desafio: isolar o gene que garantia aos Extemporais a resistência às mudanças no fluxo do tempo, e transformar a substância em uma espécie de vacina. Tomou muito tempo e muitas tentativas, mas isso, como o Senhor pode imaginar, era algo que tínhamos de sobra. Finalmente conseguiram sintetizar. Sabiamente, o professor manteve a descoberta em segredo.

Em seguida, com a ajuda da ITB, ele realizou o mais completo censo de Extemporais já realizado. Quem eram, onde e quando estavam, quais eram as características psicossociais de cada um.

Depois disso, criou uma força tarefa secreta, composta de indivíduos selecionados, todos Extemporais, treinados e confiáveis para o fim desejado. Não podia haver margem de erro.

O próximo passo requeria a escolha de um ponto na história, o mais longínquo possível, que se conectasse com outro recente, mas que pudéssemos ter certa precisão nas datas. Isso era uma condição específica para o plano ser bem sucedido. O ponto escolhido foi o período imediatamente anterior ao reinado de Tutankamon, que se conecta com a descoberta da câmara por você, professor. O motivo, eu explico em seguida. Para que essa fase viesse a funcionar corretamente, a equação original da máquina do tempo foi alterada, permitindo viagens muito mais distantes.

Tivemos uma derradeira reunião. O professor Jagadeep, muito consternado, explanou os motivos que o levaram a agir da maneira que estava prestes fazer. Eis as palavras dele:

“Meus caros. Como vocês sabem, eu perdi meus pais num acidente muito cedo em minha vida. Fui criado por parentes num subúrbio de Londres que sempre fizeram questão de deixar claro que minha presença entre eles era um problema. Desde que entrei em minha primeira faculdade, de física, concentrei meus estudos nas teorias de controle do espaço/tempo. Alguns colegas imaginaram que eu meu foco era devido à vontade de refazer a história, de prevenir o acidente que levou meus pais.

Não posso dizer que esta motivação não tenha me passado pela cabeça em minha solitária juventude. Mas quanto mais me aprofundava no assunto, mais percebia que essa seria uma utilização por demais mundana e perigosa de uma ferramenta com um potencial tão grande. Minha pretensão sempre foi outra.

Cresci num mundo à beira do abismo. Do esgotamento dos recursos, da crescente iminência de um grande conflito. Eu achava que a colaboração entre homens da ciência de diversas épocas, com o compartilhamento de tecnologias e valores traria a maior explosão de prosperidade que este planeta já havia experimentado.

E também, de certa maneira, ao poder visitar o passado, rever os entes queridos, participar de suas vidas, tudo isso era como um tipo de eternidade.

Quando os primeiros resultados da colaboração temporal aconteceram, eu não me continha de felicidade. Mas ao que tudo indica, o ser humano não foi feito para a vida em harmonia.

Confesso que fui, aos poucos, levado pela vaidade, pela ambição, pela enormidade do dinheiro que minha invenção me proporcionou. E porque no fundo, eu achava que, apesar do monstro que estava se formando lentamente perante meus olhos, nós nos adequaríamos, nos adaptaríamos, como fizemos com tantas tecnologias antes dessa. No fim, nós perduraríamos.

Vendo hoje o estado das coisas, sou obrigado a me confrontar com meu erro. Nunca estivemos mais próximos da extinção do que agora. De fato, o componente temporal adicionado aos problemas políticos, sociais e geográficos mostrou que essa matriz só piorou as coisas.

Sinto-me hoje como o pior dos seres. Pois sou o único homem do mundo capaz de reparar o que fiz. Mas para isso, me tornarei aquilo que mais desprezo: um tirano. Deverei tomar uma decisão que afetará milhares e milhares de pessoas, e que gostaria demais de evitar, gostaria de dizer que há uma outra forma. Mas não posso. Não devo. É minha responsabilidade.

Meu consolo é que serei tanto algoz quanto presa. E que pagarei o mesmo preço com o qual condenarei tanta gente.”

Ele então finalmente explicou o plano, que em seguida, repasso ao Senhor. Apenas espero ter sido claro o bastante.

1) Extemporais treinados seriam enviados a 1932, em Londres, onde estava Tempo Porto mais antigo construído. Lá, eles se dividiriam em três times.

2) O primeiro time destruiria o Porto. É de suma importância que não existisse forma de se passar a qualquer ponto do futuro a partir dali.

3) O segundo time deveria montar um laboratório, onde fabricaria os insumos conforme orientações do Professor Jagadeep, e posteriormente, colocaria encomendas no local combinado.

4) O terceiro time ficaria com o fardo de iniciar a missão realmente nefasta desse projeto. A execução sumária de todos os Extemporais catalogados nesta época.

5) Paralelamente, outros times de Extemporais seriam mandados a diversas épocas, com o mesmo objetivo. Não poderia haver nem um Extemporal vivo. Mesmo nossos agentes tinham concordado com ordens de auto-terminação uma vez que o intento fosse atingido.

6) Enfim, chega a minha parte na empreitada. Fui mandado para o Egito antigo, com um aparelho portátil, semelhante ao primeiro, que o Doutor usou pela primeira vez. A viagem seria somente de ida. Como tenho ascendência árabe, supomos que eu conseguiria me mesclar mais facilmente entre o povo desta época, o que realmente aconteceu. Meus conhecimentos de ciência me dariam vantagem para galgar meu caminho até o palácio. Fui mandado com bastante tempo de sobra, para aprender o idioma. Não foi nada fácil, Senhor Carter. Eu lhe asseguro, foi mais árduo do que eu poderia supor, por mais pessimista que eu fosse. Mas alegro-me em dizer que, no fim, tudo se encaminhou para que eu pudesse deixar esta nota para você.

7) Por fim, a parte derradeira do plano. Um único Extemporal seria enviado ao ano de 2070, com ordens do Professor Jagadeep de assassinar a um menino de 15 anos. Ele próprio. Se nunca viesse a desenvolver a máquina, o mundo sofreria uma enorme retroalimentação, e, em tese, voltaria ao normal. O Extemporal incumbido da tarefa cometeria suicídio logo após.

Era um tiro longo, Professor Carter. Mas se o Senhor está lendo este bilhete, é um forte sinal de que tudo correu a contento.

Se meu relato o deixou curioso, confuso, ou com medo, por favor, siga as próximas instruções.

Em janeiro de 1937, o Sr. deve comparecer ao Banco de Londres, e procurar pela conta X912–7. A senha é Jagadeep. Esta conta o levará a um depósito, onde você encontrará os seguintes itens:

1 — Injeção rotulada 001 — sinto informar ao senhor que sua morte ocorrerá em 1939. Você padecerá vítima da Doença de Hodgkins. Essa enfermidade já tem uma cura em minha época natal. Essa injeção o salvará, e garantirá que tenha mais anos de vida. Pode usá-la com segurança. De fato, acreditamos que essa injeção o deixará em dívida conosco, e como sabemos que é uma pessoa honrada, levará a cabo o restante do plano.

2 — Caixa com 10 injeções rotuladas 002 a 012 — Estes são soros Extemporais. Use apenas um, em você mesmo, Professor. Ela garantirá que, mesmo que algum acidente do destino acarrete novas mudanças na história, você fique isento delas. As outras, o Senhor deve confiar a um indivíduo capaz e de sua total confiança, para que ele assuma seu papel quando sua hora finalmente chegar. E ele fará o mesmo, sucessivamente.

3 — E mais importante. Um livro. Este livro foi escrito com os principais fatos da história deste momento para frente. Uma vez em posse deste livro, o Senhor se torna o vigia da história. Qualquer coisa que indique uma mudança de rumo pode significar que uma nova máquina foi construída, e ações devem ser tomadas. O livro compreende o período entre 1920 e 2080. Ele deve ser passado de mão em mão, somente para a pessoa que for escolhida para se tornar um Extemporal. Nunca o reproduza. Cuide deste livro com sua vida, Professor. Ele foi o resultado de milhares de entrevistas, catalogadas pela equipe de Jagadeep, usando processos de arquivamento que não existirão nos próximos 100 anos de sua época. Ele é o maior documento da história da humanidade, e nas mãos erradas, pode mudar tudo pela simples razão de sua existência.

Por fim, me despeço. Não sou mais um jovem, mas ainda tenho algum tempo de vida. Não me casei, nem tive filhos, como prerrogativa da minha missão. Mas tenho fome de exploração, e muitas maravilhas para ver nesta época.

Espero que minha carta não tenha aparecido como um inseto escondido dentro de um prato requintado. Sei do fardo de carregar uma responsabilidade gratuita. Mas sei que o senhor é um humanista, e imagino que entenda a gravidade da situação. Só posso esperar que não se sinta traído pelo destino, e que aceite esta missão.

Abraços cordiais. Sorte em seu tempo.

Charles Hassoum

A arqueologia me preparou para trazer a tona, do fundo das areias, das cavernas, dos mares, qualquer coisa do passado. Por mais bizarra que possa ser, se alguma coisa já aconteceu, ela é passível de ser estudada, compreendida. Não sei o que fazer de informações sobre coisas que ainda estão para acontecer.

Mas se não sou talhado para lidar com essa situação, quem é?

Após ler e reler o estranho relato, não consigo chegar a conclusão alguma. Se é uma brincadeira, de quem seria? Por que? E como?

Toda a situação me parece uma obra de ficção, mas me sinto impedido e inseguro de revelar a mais alguém o conteúdo deste documento.

Se o relato está certo, tenho 15 anos pela frente, até que precise comparecer ao banco. E ainda que eu opte por jogar a carta no lixo, ela estará em minha mente, para sempre. Se bem me conheço, prevejo anos de apreensão, mas como nunca me deixei abater por mensagens advindas eras anteriores, não serão as trombetas do que está porvir que me amedrontarão.

Só não sei se espero encontrar uma caixa de depósito vazia no banco na data marcada, ou com os itens descritos, e qual das opções mais me assusta.

O tempo dirá.

--

--

Rodrigo Teixeira
CRÔNICAS

Designer e desenhador. Apaixonado por filmes, séries, quadrinhos e livros. Sommelier de bolacha de maizena.