Agora que ela se foi — Parte II
Crônicas caninas: a dor que volta a ser amor
Após a cremação, voltei para casa abraçada a uma caixinha de madeira marrom, nela escrita VITÓRIA. Depositei em cima da mesa do escritório, lembrando que, nos últimos tempos, era lá embaixo onde ela gostava de ficar.
Sentei no sofá à frente e olhei a caixa. É domingo e a semana se arrastará até o próximo, quando partiremos no que será a última viagem do nosso bicho viajante. Vamos deixá-la descansar em terra de família, lugar por ela amado, aonde vivia a liberdade de ser cachorro em quintal.
Na emoção da memória, ecoam lembranças agora resumidas a uma caixa, vazia em minha perda, silenciosa na ausência dela. É a tristeza doida do todo dia sem, no constatar assustado do ela não está mais aqui.
Como passar por essa semana?
Foi quando vi a mensagem no grupo de resgate de cachorros. Na mesma quarta-feira em que ela se foi, seis filhotes recém-nascidos foram abandonados na porta da clínica veterinária. Eles precisavam de ajuda, filhotes e veterinários, que paravam de salvar cachorros maltratados por maldade humana, para amamentar e aquecer aqueles pedacinhos de bicho.
Eles precisavam de ajuda e eu também.
Segunda-feira, saio da clínica abraçada a uma outra caixa, dessa vez, de papelão. Dentro dela, três filhotes, duas fêmeas e um macho, com cerca de duas semanas. Minúsculos, enroscados, de olhos fechados. Frágeis como fio de luz, mas cheios do sopro, aquele cujo apagar presenciei. Minha missão? Mantê-los vivos com mamadas a cada três horas, inclusive às duas e às cinco da manhã. A missão deles? Manter viva a minha semana.
Realocados em uma bacia, precisava de um nicho para guardá-los. E lembrei de Vitória, entocada embaixo da escrivaninha. É de lá que me fazem companhia há cinco dias, trazendo de volta a alegria perdida da casa, sob os olhos da caixinha de madeira marrom, de urna transformada em troféu: VITÓRIA nossa.
O cansaço do sono interrompido é compensado pelo engordar e crescer dos três. A bacia ficou pequena e precisei acomodá-los numa caixa maior. Se na segunda cabiam na palma da mão, na sexta já transbordavam, gordinhos e saudáveis, ansiando pela próxima mamada, enquanto os olhos fechados de filhotes novinhos, ao mundo se abriam.
É sábado, véspera de partir. Chegou a hora de devolvê-los à clínica. Em três semanas, voltamos de viagem. Quem sabe um deles não volta também?
Sentada no mesmo sofá do escritório, vejo a urna de madeira no topo da escrivaninha e o ninho dos filhotes no vão embaixo. É uma cena desarrumada de um escritório improvisado em berçário canino e seria bem caótica, se não fosse tão bonita. Nas entrelinhas do corriqueiro, enxergo a beleza do mais forte dos ciclos: o sopro apagado de Vitória guardando o pleno soprar dos filhotes, sopram esperança e renovação.
Bucareste, 12 de agosto de 2017.