Aline

#2 Crônicas subterrâneas

Alex Ruzenhack
CRÔNICAS
2 min readJan 8, 2018

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Aline #1

— Vamos filha, hoje é o nosso dia de repasto, não devemos nos atrasar ou vamos ficar sem comer por mais dois dias.

— Já acordei, mãe. Vamos. — Levantou num salto, se olhou no espelho precário de cobre, ajeitou os cabelos desgrenhados e se dirigiu a porta. Esperou sua mãe se juntar a si e saíram juntas pro túnel.

Todo dia a mesma rotina: o sinal toca, acordamos; saímos para o túnel de acesso ao repasto, mas nem todos comem; somos levados ao túnel de acesso ao sacolejador, que nos leva até as galerias de lixo; depois do trabalho vamos até as grutas desinfetantes; por fim, temos uma hora livre, até voltarmos para nossas grutas familiares.

Nesse dia, no entanto, em meio a procissão de gente apática, com suas túnicas cor de ferrugem, mofadas e mal cheirosas, sentiu a presença de um olhar fixo, quase como um toque de uma mão firme em seu rosto. Olhou discretamente seu flanco esquerdo, buscando um rosto para esse olhar, mas não encontrou. Essa presença, no entanto, só pode ser de uma pessoa…

— Marcos, é você? — levou um assustou quando o vulto se aproximou por de trás, ao seu lado direito, tocando em sua costela.

— Hoje a noite. Você está pronta? — sussurrou em seu ouvido.

— Não posso. Não posso deixar minha mãe. Você sabe o que vai acontecer a ela. — Olhou na direção de sua mãe, que caminhava a sua frente embalada no ritmo da procissão com a precisão nos passos de quem perdeu o sentido de si próprio.

— Você não pode viver para sempre o destino de seus pais. Precisa escolher! Sabe que outra oportunidade não há. Logo vão descobrir nosso túnel de fuga, assim que começarem a manutenção dos dutos de água daqui a dois dias.

— Como chegou até aqui? Sabe que é proibido dormir fora da sua unidade.

— Assim como é proibido conspirar uma fuga. E isso não te impediu de estar nessa. Qual vai ser, hein?

— Lamento, não posso deixar minha mãe para morrer por mim.

De repente Marcos para de andar e se deixa ficar para trás. Alice olha em sua direção, num lance rápido e consegue capturar em seus lábios “você escolheu”. Suas palavras finais ela ouviu no coração, uma pontada tão forte de ressentimento, ansiedade e esperança fez pulsar seu sangue e corar suas bochechas de vergonha de si mesma.

Apressou seus passos para alcançar sua mãe. Segurou em sua mão e uma olhou para a outra aquele olhar recíproco que diz: você é tudo que tenho. De mãos dadas chegaram ao refeitório para o reposto do dia.

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