Anjo terreno

Cristina Hélcias
CRÔNICAS
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3 min readMar 29, 2017

Personagens da rua

Foto: arquivo pessoal

E lá estava ela. Era outono e a encontrei ajoelhada, limpando a memória do morto. Pelas ruas de Bucareste, cruzes marcam o ponto de passagem dos que entre nós não mais se encontram. Levados por acidentes?, imagino, lembrando-me o mesmo costume, espalhado pelas estradas do Brasil. Acontece que, em terra romena, este tipo de marco pode ser visto com certa frequência pela própria cidade, em suas calçadas e esquinas. Geralmente abandonados, são adornados por ferrugem e flores secas, enquanto jazem escondidos atrás de mato e esquecimento. São todos assim, com exceção de um, o dela.

E lá está sempre ele. Na esquina da Calea Floreasca com o Bulevardul Mircea Eliade, a grama verde bem cortada atrai os olhos de quem passa para o pequeno monumento póstumo, feito em mármore branco. Caminho todas as manhãs por esta esquina, durante o passeio com Vitória, e não pude deixar de notar o cuidado com que aquela lápide sem túmulo é mantida. Faça chuva, neve ou sol, em qualquer das quatro estações, tem sempre uma vela de sete dias flamejando, acesa sob a proteção de um candeeiro, acompanhada por flores frescas e bem escolhidas, abrigadas em vaso com água. A bem dizer, apenas durante o inverno a frescura das flores foi substituída por suas cópias em plástico, mas a velinha continuava em chama, iluminando manhãs brancas e noites geladas, semana sim, semana também.

Todo esse cuidado inspirou-me certa curiosidade, afinal, aquele morto ainda era muito importante para alguém e também respeito, sabendo Vitória não ser possível fazer xixi ou coisa outra, naquelas imediações. Por isso, a cada passagem, passei a prestar mais atenção e descobri que gravados na pedra havia um foto pequena acompanhada pelo nome, além das datas de nascimento e morte. Era um homem, mais jovem do que eu dois anos, morto há três. Ele tinha a versão romena do nome de um dos meus avôs e o seu rosto no retrato trazia um sorriso tranquilo, típico de gente amigável.

Verdade seja dita, além de curiosidade e respeito, a passagem diária por aquele ponto me tomou de afeição, não exatamente pela tranquilidade do sorriso de meu novo amigo, mas pela pessoa que não o deixava ser esquecido, permitindo-o continuar a fazer amizades, mesmo depois de morto. Tinha uma suspeita de quem poderia ser, trocando flores, limpando poeira e acendendo velas, mas essa pessoa nunca aparecia, até aquela manhã de outono.

Era sábado e voltávamos de um longo passeio no parque, eu, Chris e Vitória: e lá estava ela. Ajoelhada em frente ao marco, a mulher de mais idade trocava as flores, limpava a poeira e acendia a vela. Fazia tudo com calma e carinho, carregando, em seus olhos, certa tristeza e resignação. Decidimos nos deter a alguns passos, admirando a delicadeza de seus gestos, e também passar de longe, dando a ela espaço e deferência.

Seguimos caminho, mas, antes de muito nos afastar, olhei para trás, buscando novamente a sua imagem. Foi quando não tive dúvidas. Naquele dia, a minha suspeita confirmou-se: o meu amigo ainda tinha mãe, porque só as mães lembram, só as mães não nos deixam esquecer.

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Cristina Hélcias
CRÔNICAS

Relatos de uma vida pelo mundo e pitacos de uma personal stylist .