Aquela velha canção

Anderson Carvalho
CRÔNICAS
Published in
3 min readJun 14, 2018
Photo by Joel Muniz on Unsplash

É um buraco de minhoca e é tudo do avesso. O fato é que nunca mais serei meu novamente. Numa das curvas do caminho, culpa de um bolso furado, me caiu pela perna meu certificado de posse de mim. Caiu no mundo e agora sou dele. Caí no mundo e me despedacei. Caí na vida e me transmutei em ruas, sarjetas e muros pichados. Caí na real e me abriguei nas palavras, na alquimia do verbo. Alguém já disse isso muito antes de mim. Talvez com bem mais propriedade. Talvez não, com bem mais propriedade. Alguém, alguém. Lembro de ser alguém. Lembro de alguém ser.

Não sei mais o que faço

Ah sim, um dia fui pleno, um dia fui eu mesmo. Teve uma noite que a plenitude foi um deep house que tocou por horas embaixo de um viaduto e eu dancei sem parar. Olha que nem sei dançar, mas meus pés sabiam o caminho, sabiam os deslizes e deslizei por auroras e cheguei em uma manhã avulsa e lateral. Outra caí e sangrei pela cabeça, alguém gritou dezoito! e a bola atingiu em cheio a menina desavisada. S.L.R.F., aquele abraço! A plenitude já foi um empurra-empurra e aquela adrenalina que nasce dentro mas não sei bem onde. Nasce junto com o rio, com as guerreiras, Amazonas. Não à toa tem o mesmo nome. Adrenalina é apelido. Mas sabe-se lá o nome das coisas. Melhor nem pensar nisso. Sei que já fui pleno por romper, por ultrapassar, por ser qualquer coisa além. Já fui meu, tenho certeza que já fui meu. Agora não mais, agora sou tudo, sou um, menos meu.

Eu já fumei dez maços

E então? E agora? Túneis, túneis, túneis. Ernesto tinha razão. Toda comunicação clara é impossível. Toda compreensão é passível de pena de morte. Mas será mesmo? De repente um sotaque porteño. E esse sotaque porteño antes foram dedos em teclas de piano, foram danças de salão que nunca existiram e foram músicas cantadas a plenos pulmões por uma voz levemente estridente. Mas agora é o sotaque porteño e não importam mais os prólogos, ainda que sejam fundamentais. Mas, quem diria? Quem disse? Quem dirá, eu te falei? Por favor, não se assuste. São retóricas todas as perguntas. Bah! e não é que é isso mesmo? São retóricas todas as perguntas! Nem podia ser diferente. Mas o sotaque, ah! o sotaque veio pra ficar, se não na vida, na memória. Se não na memória, em mim. Na pele. Na última imagem que dizem ficar eterna na retina. Mas que dizer das memórias, não são parte da vida? Não são as memórias reais? Acho que perco o rumo, em troca ganho um sorriso no canto dos lábios. E como é bom desistir de uns planos em nome de outros. Como é bom ser pluma ao sabor do vento em vez de mármore lapidado por um artista duvidoso.

Mandei tudo pro espaço

O que sei são os refrões que ficaram, e com certeza ficarão, na memória para sempre. Só o que fica é para sempre. As velhas e conhecidas canções. São opalas e dominações. Euforias e cagaços. A arte imita a vida e por isso é tão bela e tão completa. Ou, a vida imita a arte e por isso é tão confusa e fora de foco. Sei é que corro atrás do fio da meada. O famoso fio da meada que nunca soube o que era. Talvez seja só mais uma anedota do Compadre Folharada, que nem deu as caras por aqui ainda. Enfim, os refrões. Vivam os refrões! Aqueles que cantamos em uma tarde há um bom tempo atrás — e um bom tempo atrás nunca será tão bom nem tão direto quanto a long time ago — e esses refrões de hoje em dia nunca serão aqueles daquelas tardes, naqueles tempos. Não para mim, para mim os refrões estão conservados em âmbar, sonoros e sólidos. Mas não posso afirmar nada, não sou mais meu. Sou do mundo.

Agora eu só quero paz!

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