Arte contemporânea

Personagens da rua

Cristina Hélcias
CRÔNICAS
4 min readApr 26, 2017

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São Paulo — Foto: arquivo pessoal

Vamos chamá-la de a moça do moletom laranja. Ela morava pelas ruas dos Jardins, embaixo de galhos estufados por orquídeas, fazendo de certas marquises seu teto. Era fácil vê-la na esquina da Haddock Lobo com a Tietê, em frente à pizzaria, ou cruzando a Augusta, ainda pela Tietê, do lado oposto ao da lanchonete. Verdade mesmo, passei a encontrá-la com mais frequência quando morei na Pe. João Manuel, logo ali, antes de cruzar com a Franca.

Muito embora a moça do moletom laranja mudasse de acordo com o fazer sol ou chuva, vez ou outra, também levantava acampamento ao ser enxotada por algum dono da rua. Nessas horas, ela se tornava assustadora, arrancando choro de criancinhas. A moça gritava em agudos finíssimos, numa língua impossível de se entender, mais parecida com dialetos saídos de filmes de terror do que com português.

E não era raro acontecer tudo junto: a chuva, criando cachoeiras tropicais num dos metros quadrados mais caros da cidade, o enxotar pelo dono da rua, os gritos satânicos, a criança chorando e a fila de espera, na porta da pizzaria.

Era claro o quanto a presença dela incomodava. Passava por ali e me perguntava o porquê de tanto. Talvez, estampasse aos olhos nus de quem finge não ver, mundos outros muito maiores e doídos do que o pedaço daquela São Paulo, tão pequeno quanto comumente inflado ao peito, sob o título forjado de um primeiro mundo de ficção. Hei, isso aqui não é nada, há terras tão grandes lá fora e, saindo desse fora, além dessa São Paulo desconhecida, sabia que existem grandezas ainda mais imensas, com pizzas, pasmem, até melhores? Os “talvezes” poderiam ser muitos, pensava eu, de guarda-chuva em punho, virado ao avesso pelo vento, e pés encharcados durante o rafting urbano da volta para casa.

E lá ia a moça fazer mudança. Primeiro, levava o colchão gordo, onde à noite se escondia entre cobertores grossos; depois, chegavam as malas, duas grandes e cheias, pesadas mesmo. Parecia ser na Franca onde tinha certa paz, protegida que estava pelo paredão do prédio às suas costas; à sombra de uma grande árvore; sob a gentileza zelosa da senhora da banca de revista, logo ali na esquina; única do bairro a saber o nome dela.

A moça do moletom laranja vestia sempre a mesma calça bege e prendia os cabelos com uma touquinha outrora branca, dessas usadas por cozinheiros em restaurantes. Cedo pela manhã, seu colchão estava enrolado e ela sentada em alguma esquina, fumando cigarro e tomando cafezinho. À tarde, era fácil encontrá-la de volta ao acampamento, absorvida por algum livro grande com figuras coloridas, geralmente lido de ponta-cabeça.

Vez ou outra, passeando com Vitória, ela vinha tranquila, em seu andar cambaleante e sorriso sem dentes, balbuciar pedidos de carinho no cachorro. Vitória, sempre conhecedora dos que dela gostam, fazia festa com seu rabo enrolado, deixando-se acariciar. Enquanto isso, a moça balançava a cabeça de um lado para o outro, soltando palavras incompreensíveis, acompanhadas por gestos de satisfação. Ela me encarava com o enrugado de seus olhinhos vivos, em busca de concordância. Nessas horas, fazia o meu melhor para responder, consentindo com sorrisos devolvidos e balançares mimetizados. Seguia, assim, por alguns minutos, até ter matado sua vontade de acarinhar. Dava duas tapinhas camaradas na perna do bicho e partia.

Certo dia, estava eu cedo, em frente ao balcão de uma gráfica na Itú, quando notei os funcionários, com olhos esbugalhados e bocas entreabertas, olhando pelo vidro, em direção à rua. Virei-me, curiosa, para saber o que os espantava e lá estava ela. No meio-fio, em frente à gráfica, com as calças abaixadas e de cócoras, a moça do moletom laranja fazia cocô. De cabeça erguida e braços firmes, apoiados nos joelhos, ela me pareceu muito sabedora do seu fazer. A moça desafiava, defecando de volta, a merda todo dia recebida. Terminado, subiu a calça bege e se foi.

Acusavam-na de causar confusões. Quem não causaria, na situação de loucura imposta pela rua? Tem fome e frio; tem o se acostumar com restos, desaparecendo na podridão de calçada em calçada. Em sã consciência, quem não faria? Não é roubar, nem agredir. Mas se confundir confundindo, na sanidade de sua loucura.

Naquela manhã, a moça do moletom laranja me fez pensar nessas instalações de arte contemporânea visitadas em museus importantes. Essas que, para entendermos suas pretensões, é preciso ler um tratado explicando sobre a desconstrução do mundo onde o autor confortavelmente vive, e o quanto ele caga para a sociedade que o enxerga e expõe, numa espécie de denúncia vazia de quem se salvaguarda na arte, sem nunca ter coberto a pele com a invisibilidade encardida de certos moletons. Ao vê-la acocorada com a bunda à mostra, no meio de uma rua real, não precisei ler manual algum para entender. A moça fez da realidade arte completa e do seu cocô, manifesto definitivo. E se ela sempre teve o meu respeito, aquele devido a qualquer um por existir, a partir daquele dia, a moça do moletom laranja ganhou também minha admiração.

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Cristina Hélcias
CRÔNICAS

Relatos de uma vida pelo mundo e pitacos de uma personal stylist .