As fracas aventuras de uma moça em uma cidade toda feita contra ela

Ana Carolina Santos
CRÔNICAS
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3 min readAug 6, 2017

Desembarco do metrô e respiro o ar do Catete. Um ar com cheiro do verde das árvores do jardim do Palácio. Depois de mais de uma hora no metrô, é um alívio senti-lo. Adentro o parque e sento-me em um banco qualquer. É uma linda manhã de sexta-feira. O sol disputa espaço com as copas das árvores.

Saco o livro da mochila. É “A Hora da Estrela”. Deito-me no banco para devorá-lo. Passam dois minutos e um segurança do parque me aborda. É proibido deitar no banco. A situação me lembra a clássica canção de Bruno & Marrone. Sento-me e retomo a leitura. Decido ir ao banheiro.

De dentro da cabine, ouço a conversa entre uma mãe e a filha pequena. “Não tô com vontade, mãe”, diz a menina. “Se esforça um pouquinho, Luiza, pra depois você não ficar apertada.” A pequena acata. Faz barulho de xixi com a boca. Shhhhh.

Volto para o banco onde estava. Um cara de cerca de 45 anos passeia de braços dados com uma velhinha de uns 80. Devem ser mãe e filho. “Forjável. Um neologismo. O que se pode forjar”, ele diz, com um sotaque paulista. Soa como um professor.

Em meio à leitura, tenho uma epifania. Ambismo. Outro neologismo. Ambos mais abismo. O abismo de ambos de nós. Ambas de nós, no caso. Nutro uma vaga esperançazinha de que romperemos esse abismo daqui a dois dias, em outro parque. O parque que é nosso por direito.

Um menino de uns 9 anos passa dando bom dia para todos os presentes. Aos velhinhos e a mim, que ainda não sou uma velhinha, não fisicamente. O senhor ao meu lado aproveita-se da deixa para puxar conversa.

Olhar pra cima e ver planta e sol. (Foto de Ana Carolina Santos)

De todas as coisas sobre as quais ele poderia falar (a beleza do sol da manhã, a alegria das crianças, o espaço verde em meio à metrópole), ele escolhe a política. Meirelles, 217 milhões de reais. Esse país é uma vergonha.

“Você interrompe minha agradável manhã com Clarice pra falar dos malfeitos dos nossos representantes?”, quase digo, mas me freio. Nunca interrompo idosos quando estes entabulam conversa comigo, porque sempre penso que são solitários e não têm ninguém para ouvi-los.

Eu estava com toda a boa vontade do mundo enquanto o assunto era o Meirelles, mas aí ele passa pro Lula. Luladrão, cachaceiro, cabeçudo. Reflito se devo bater de frente com ele e expor minha opinião ou se devo deixar pra lá. Opto pela segunda opção. Simplesmente não nasci para tretas.

“Senhor, infelizmente tá na minha hora, preciso ir pro trabalho, foi um prazer”, me forço a cortá-lo. “Espera, você é baiana?”, ele pergunta e eu já começo a desconfiar de que ele é um daqueles velhos safados que perseguem jovens mulheres. “Não, sou carioca da gema, mas minha avó é baiana de Caravelas.”

Dou tchau, aperto-lhe a mão e sigo meu rumo. Grupos de velhinhos passam por mim. Engraçado como quase todos os idosos dali têm sotaque português. Crianças correm ao meu redor. A cidade nem sempre é gentil e acolhedora, mas até que nesse dia ela estava feita para mim.

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Ana Carolina Santos
CRÔNICAS

Leitora e escrevedora de transporte público. Faço o podcast Caracoles: https://linktr.ee/santosacarolina