Benson

A história de uma mente quase sã

Ivan Bonillo
CRÔNICAS
10 min readJul 4, 2017

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Eram 7 horas da manhã. Acordei sentindo que havia levando uma pancada na cabeça. Cristo, tenho que parar de beber. Quando finalmente consegui me levantar da cama e fui rumo à janela abrir as cortinas, quase morro do coração: um homem engravatado estava sentado na minha cadeira de pensar.

- PUTA QUE PARIU!

- Assustou, doutor? Desculpe-me, de verdade. Não era minha intenção. Mas enfim, muito prazer. Sou Benson.

- Quem vo…que porra é essa, como você entrou aqui?!

- Simplesmente entrei, oras. Qual a complexidade disso? O sorriso do homem era assustadoramente calmo e simpático,

- Se você não sumir da minha frente agora eu juro que vou te cobrir de porrada!

O homem ficou vermelho de tanto gargalhar.

- Claro, claro. Faça o que quiser, eu já estou morto mesmo.

- HEIN?!

A única expressão que consegui demonstrar foi a de um cão quando percebe que mijou na própria pata — seja lá o que isso signifique.

- Por que o espanto?

- Cacete, eu realmente preciso parar de beber.

- Ei, olha o respeito, rapaz. Eu não sou nenhum delírio de sua pobre mente infértil, certo? Simplesmente já estou morto, e decidi vir lhe fazer companhia. Você está precisando. Eu poderia até mesmo te oferecer colo ou um carinho, mas sabe como é, não é bem a minha praia.

Não podia acreditar naquilo. Alguém deve ter colocado algo em minha bebida na noite passada. Não fazia sentido.

- Claro, então você é um zumbi?

- Bem, — ele se remexeu na cadeira — eu diria que você anda assistindo muito The Walking Dead, mas se você prefere assim, que seja.

- Todo engomadinho desse jeito?

- E daí? Eu preciso estar coberto de necroses, encharcado de sangue e andar mancando e gemendo pra ser um morto vivo? Tome tento rapaz, você anda jogando Resident Evil demais.

- Claro que sim, eu ja zerei até o 3 e inclusive…

Meu deus, o que era aquilo? Com certeza um sonho. Fui até a cozinha pegar alguma coisa para comer na esperança de que aquilo realmente fosse um sonho. No caminho, senti um beliscão na perna.

- AI!

Pela segunda vez em menos de cinco minutos, não acreditei no que via. Uma caixa de leite estava andando pelo corredor, ziguezagueando.

- Ei grandão, toma cuidado aí, cacete!

E a desgraçada ainda me mostrou o dedo do meio antes de continuar sua caminhada.

Mas que porra é essa?!

Aquela situação era surreal demais, até pra mim. Um morto engravatado e risonho sentado no meu quarto, uma caixa de leite andando pela casa. Que diabos era isso?! Um sonho, com certeza. Ou uma onda forte de alguma coisa que eu desconhecia. E olha que eu conhecia muita coisa.

Quando cheguei na cozinha, o balcão de mármore havia se transformado num piano.

Não mais era uma bancada, e sim um emaranhado infindável de teclas tão brilhantes que chegavam a incomodar os olhos.

Eu devo estar ficando louco. Definitivamente, estou. Preciso ligar par alguém. Alguém que possa me dizer que eu estou ficando maluco.

Peguei o telefone e liguei para Karen, a única pessoa que imaginei que poderia me entender e acreditaria que eu não estava louco, ou que iria me acordar daquele sonho insano. Ou confirmar que eu estava mesmo biruta.

- Alô?

- Karen, sou eu, Don.

- Oi, Don. Aconteceu alguma coisa? Sua voz está meio embargada. Andou bebendo?

- Bem, eu ia…. Hey, eu senti um tom de ironia na sua voz.

- Bem, pra você estar me ligando às quatro horas da manhã, acredito que algo esteja errado.

- Karen, são SETE horas da manhã!

- Don, você tá doidão de novo?

- Eu acho que sim. Olha, eu sei que você vai achar loucura, mas tem um cara no meu quarto que diz que está morto, um zumbi, sei lá que porra é aquela, minha bancada da cozinha virou um piano, as caixas de leite estão andando, e tem alguma coisa..

- Don — interrompeu — eu não sei o que você usou, mas vai dormir, por favor.

- KAREN, VOCÊ NÃO ESTÁ ENTENDENDO, EU NÃO USEI NADA, SIMPLESMENTE ESTÁ ACONTECENDO! PELO MENOS ME DIGA QUE É UM SONHO, PORRA!

- Don, infelizmente não é um sonho. Realmente está acontecendo.

Era só o que me faltava.

- Karen, olha a porra do sol lá fora, você é quem tá viajando, pelo amor de deus!

- Don, eu sinto te informar, mas eu nem duvido de nada. Por exemplo, você está falando comigo agora, mas seu telefone está cortado há 2 meses….

- COMO É?! Olha, você está ficando louca!

Sem mais respostas. Fez-se o silêncio no falante do telefone. Não dava mais sinal. Por deus, o que é que estava acontecendo? Teria eu perdido completamente minha cabeça?

- Difícil de acreditar, huh?

Novamente, o homem engravatado estava falando comigo, desta vez em pé, fumando um de meus charutos.

- Você ainda não sumiu daqui? E você está fuma…puta merda!

- Relaxe, rapaz. Eu já morri mesmo, não precisa se preocupar com minha saúde. Não é como se eu fosse ter um câncer de pulmão, né?!

Certo, aquilo tudo não passava de uma comprovada loucura, um momento de surto, talvez. Certa vez havia lido em algum jornal sobre surtos psicóticos instantâneos ou alguma porcaria parecida, e me lembro bem que o artigo dizia para enfrentar os demônios interiores, essa era a única maneira de sair daquele abismo. Decidi então conversar normalmente com aquele sabe-se lá o que e fingir que aquilo nada mais era do que um dia normal em minha vida — que também não era lá uma das melhores — , e aquele era nada mais que um diálogo com algum bêbado vagabundo de rodoviária.

- Tudo bem. Você está morto, certo?

- Exato.

Deu uma tragada no charuto. A fumaça saía de sua boca de uma forma estranha.

- O que você fazia antes de…bem, morrer?

- Eu era engenheiro de aeronaves, e também era professor de Alemão em Harvard.

Hmm, um zumbi cult. Magnífico!

- Porém eu sofria de problemas de coração e num não tão belo dia, ele pifou e bum, virei isso aqui.

- Até que você não esta tão mal pra um morto vivo.

- Mas que inferno, homem! Já te falei, pare de ficar estereotipando as coisas!

O homem jogou o charuto longe, irritado, pigarreando: Mas que porcaria de charuto, homem! Essa merda mata até defunto, porra! Como é que alguém consegue fumar essa coisa?!

- EEEEI!

Olhei para o lado. Novamente, a caixa de leite.

- Escuta aqui, se você me pisar ou continuar atirando coisas vagabundas em mim, eu vou espalhar leite por essa merda de casa inteira, está me ouvindo?! FILHO DA PUTA!

Charuto vagabundo?! Essa merda me custou 10 pratas, porra! Vale mais do que você, sua merdinha! E quem é você pra dar uma de degustador de fumos?! Você nem pulmão tem mais, porra!

Eu não aguentava mais. Por alguns minutos tentei lidar com toda aquela loucura como se aquilo fosse perfeitamente normal como mais um dia qualquer no trabalho ou uma caminhada no lago, mas estava claro que não iria passar. Sentei no chão da sala me recostando na cadeira e fechei meus olhos por alguns minutos, implorando para que quando eu os abrisse novamente, tudo aquilo tivesse desaparecido. Foi então que comecei a ouvir risadas, muitas delas. Estava com medo de abrir os olhos novamente, mas cedo ou tarde, teria que fazer. Quando o fiz, tudo estava rindo de mim. TUDO, literalmente. A mobília, os quadros, o tapete, a cortina.

Provavelmente, morri. Só pode.

Foi quando a caixa de leite escalou minha perna até meu joelho e disse, chorando de rir:

- Olha aqui grandão, que coisa feia, está parecendo uma criancinha dando chilique! Cria vergonha nessa cara e vai caçar um serviço, seu vagabundo! Esta casa está uma zona, e trate de tirar a porra daquele cachorro de cima do lustre, não aguento mais tomar cagadas na cabeça! Tá achando que eu sou privada agora é?

A caixa desceu escorregando pela minha perna e se dirigiu ao tapete.

- Muito bem galera, vamos continuar. No três, hein?! Um, dois, três!

E uma melodia começou. Um coral, uma ópera. Tudo naquele lugar produzia um som, cada som com sua cor, cada cor com sua história, suas tristezas, mágoas e alegria. E tudo rodopiava mais veloz do que um carrossel egocêntrico girando em torno de si mesmo ou talvez de mais alguém. Benson agora tocava meu “piano” de mármore com uma pose digna de Ray Charles, segurando o charuto entre os dentes e tocando maravilhosamente bem.

- Entra na onda, homem, para com essa caretagem e se entrega ao devaneio! Uhul!

Devia ser um puta dum pianista também, além de um engenheiro nerd. Desgraçado!

Estava começando a me conformar com toda aquela loucura. Talvez fosse até mesmo verdade. Olhei para o teto e vi um pastor belga com as pernas cruzadas em pose de rainha da Inglaterra durante o chá das três me fitando com um olhar blasé.

- Bom dia, confrade.

Fiquei sem palavras. Aliás, não existiam palavras para nada daquilo. Nada mais era real, nada mais tinha o menor nexo, eu não sabia mais quem eu era, quem aqueles eram, que mundo era aquele. Benson era um cara legal, não devia ter feito nenhum pré julgamento do rapaz.

- Venha dançar conosco, disse um periquito amarelo.

Bom, a esta altura do campeonato, adiantaria dizer não?! Que se foda, vamos!

E tudo magicamente se transformou em um Nirvana. Ou um Samsara. Um festival de cores, de amores, onde cubos e formas geométricas se fundiam em sentimentos transcendentais únicos, onde minha mente incandescente inseminava delírios completamente sãos em minha mente. O sofá e seu magnífico swing de jazz antigo, os quadros, as batidas, cada onda sonora era como um furacão despertando o inconsciente mais profundo de cada um nesse planeta. Eu era parte de tudo isso. Eu era o planeta.

O som agora tinha cor. Dancei uma valsa lenta com a saudade, ainda com Benson solando estridentemente aquele piano e gingando como ninguém. Ah, que maravilha! Copos faziam break no ponteiro do relógio, girando desgovernadamente ao contrário. As paredes haviam se tornado imensos telões, que brilhavam, reluzindo a liberdade e exibindo memórias de vidas passadas. Os objetos tomavam formas côncavas, e o cinema da vida passava a história de cada um, enquanto os monges ecléticos espancavam os sinos da alegria no mais alto dos montes da inocência e eram capazes de tilintar até no mais dorminhoco ermitão do Himalaia.

Vaaaai! Berrava Benson, tocando cada vez mais rápido, tão rápido quanto a luz, quase tão rápido quanto a vida, talvez só não tão rápido quanto a tristeza. Eu mal podia mais ver suas mãos, tamanha era sua velocidade. E cada vez mais, e mais, e mais. E mais ele gritava “É isso aiii, vamos láá porra, vamos curtir esse som! Ele não conseguia conter sua emoção, estava pilotando o trem da vida, cada célula do seu corpo era alegria, era vida, exalava no ar, dava pra ver, dava pra sentir, pra cheirar, e ia cada vez mais rápido, não se importando se iria descarrilar ou não. Seu sorriso esbanjava uma expressão mais viva do que nunca, apesar de ser um morto. Seria mesmo a morte tão triste assim? Não interessava. Não para o velho Benson.

- Balança essas cadeiras, seu dois de paus desgraçado! Vaaamos cacete, DANÇE!

Todos na sala estavam curtindo, até mesmo o cão continuava a fazer estripulias no lustre, sujando todo o teto. Tudo estava ficando encardido e imundo, como numa versão trash de Woodstock às avessas na cabeça de algum lunático de alta periculosidade, mas, quem se importava? Somente as luzes loucas daquele lugar que um dia havia sido minha casa já eram o suficiente para ter certeza de que aquilo era o paraíso. Então, como num súbito auge do êxtase meridional, uma flecha flamejante tomou conta do lugar arrastando todos para além do infinito, num universo paralelo, muito além das p-branas de Stephen Hawkings ou outra loucura qualquer de algum outro maluco. Diante do julgamento, ali todos estavam. A flecha, os monitores de neon, as cores, as luzes, as dores, o futuro atrasado de cada um de nós. Deus, como aquilo era maravilhoso! Não me importava mais quem era vivo ou morto, o que era certo ou errado, reto ou torto. Só me importava estar ali, onde o tempo não existia e tudo o que eu havia crescido ouvindo serem ilusões ou devaneios, era tão real como uma pancada no nariz.

Benson agora estava praticamente destruindo o piano de mármore, suas mãos derretiam devido a sua velocidade impressionante fritando as teclas do piano como um mamute embriagado cambaleando por entre a manada que fugiu do cativeiro rumo à liberdade. Aí sim consegui entender o porque do pobre ter morrido do coração. Em vida, deve ter corrido além da conta, cortado além da ponta. Maldito bataticultor de muros, pensava o gabinete de canto, em depressão. Mal conseguia acender o abajur, enquanto as lantejoulas pirilampeavam pelos cômodos. Vrumm, vrumm, como uma canção de ninar aos olhos de um velho que procura por seu outro par de chinelos cansados com muita dificuldade, devido à catarata em estado avançado.

Após o cansaço daquela balada, resolvi retornar ao meu quarto. Estava cansado, de verdade. Agradeci de coração a todos pelo evento, e fui para a cama. Benson então apareceu em minha porta.

- Bem, acho que é hora de ir embora.

- Mas, já?

- Homem, eu morri, mas não sou vagabundo.

Confesso, tive que rir.

- Tudo bem. Desculpe por antes, você sabe….

- Sem problemas, irmão. Você só precisa melhorar sua ginga, cara. Você dança pior do que minha avó de muletas naqueles dias!

No fim das contas, foi divertido. Nunca chegarei a saber se foi um sonho, uma realidade insana ou alguma outra coisa do gênero. Mas uma coisa eu aprendi: nunca duvide do que os seus olhos estão vendo. Por mais que não queira acreditar, será inevitável. Sempre existe um quê de verdade atrás daquilo que imaginamos ser surreal e impossível neste plano.

Bem, sentirei falta de Benson. Tomara que qualquer dia desses ele volte, e quem sabe possamos fazer um dueto, se a minha cozinha ainda for uma orquestra e minha loucura continuar tão lúcida como agora. Ou talvez eu acorde amanhã e esteja amarrado em um hospício para pessoas mentalmente insanas. Mas garanto que da próxima vez, tentarei aproveitar mais. Parece que durou um ano, mas não se passaram mais de dez segundos. Os melhores dez segundos de minha vida. Os segundos eternos. Talvez tempo até demais pra se viver uma vida onde uma bancada de mármore é apenas uma bancada de mármore. No fundo todo mundo queria conhecer um Benson, mesmo que o preço de conhece-lo fosse entregar sua sanidade ao relento de uma vida desconexa.

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Ivan Bonillo
CRÔNICAS

Mineiro, viajante, narniano, sonhador e cronista de fatos aleatórios dessa vida nada alheia.