Canal da pesca

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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2 min readMay 3, 2018
“Peixão bom”. Foto: Combo Iguassu.

Antes de dormir, desligo o decodificador da TV por assinatura. Uma das minhas incontáveis compulsões é olhar a hora nas tantas vezes em que acordo de madrugada. Outra é tirar o celular debaixo do travesseiro com medo de uma explosão, me deixando surdo e queimado como nas fotos e vídeos que um pessoal mais velho insiste em compartilhar nas redes sociais.

A correria do dia a dia tem seus momentos de folga e aí resolvo ligar a TV. Logo de cara, me arrependo profundamente de ter desligado o decodificador. Os segundos infinitos até aparecer a imagem do canal inicial revelam sua preguiça em voltar às atividades.

Quero ver um jornal para me manter informado de tudo. As coisas andam tão rápidas que tenho a impressão de perder a notícia do fim do mundo se ficar meia hora incomunicável. Mas, as pilhas do controle remoto andam fracas e bater com a mão esquerda na sua parte de trás não ajuda muito. Ele entende errado o comando e me direciona para o canal da pesca.

Fico revoltado por não ter tido a ideia genial de uma programação inteiramente dedicada a barquinhos em rios pelo interior do Brasil buscando um “peixão bom”, como os que o apresentador jogava de volta à água na antiga atração matinal, vista por mim enquanto minha mãe tomava banho antes de me levar à igreja da infância aos domingos.

A qualquer hora do dia, o controle remoto me entende errado e faz a TV reproduzir na tela um programa de receitas com peixes grelhados ou vários genéricos de dois homens com chapéus grandes, bermudas acima dos joelhos e um rio desbravado por um barco. Sinto enjoo só de olhar — meus medos de altura e grandes concentrações de água nunca foram discutidos na terapia.

Por vezes, desisto de me informar e prefiro ficar ali, na calmaria do canal de pesca. Uns bons minutos de prosa precedem a aparição de uma espécie desconhecida por mim, mas grande por demais, nas palavras do apresentador. Não sei se há truques de edição ou se ali temos uma conquista genuína. E nem quero saber.

Percebo uma tranquilidade rara nesses dias de caos. Desconfio até que nos momentos de angústia suprema, devo aderir à técnica do canal da pesca: basta ficar ali, diante da TV, por uma hora, admirando as belezas naturais país adentro e torcendo pelos pescadores midiáticos. Futuramente, devo anotar receitas e enviar cartas ou e-mails com sugestões para a programação, como um fã amigo. Recusarei, prontamente, eventuais convites para subir num desses barquinhos e participar de gravações: sou um animal da terra, urbano e medroso.

O canal da pesca me acalma. Pensando bem, acho até que o controle remoto não erra: uma conspiração secreta entre ele e o celular explosivo tem feito bem para minha saúde.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).