Carniça

Alessandra Nahra
CRÔNICAS
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2 min readOct 17, 2017
Ilustração: Polly Nor

Naquela época a família de Catarina morava em um bairro que havia acabado de ser urbanizado. Há apenas alguns anos, se você passasse ali, teria sido no lombo de um cavalo. O terreno da casa dos pais de Catarina — junto com o dos tios, e o dos vizinhos; na frente, atrás, dos lados, se estendendo por vários quilômetros — costumava ser uma fazenda.

Quando as casas começaram a ser construídas, eram de madeira. Cada uma de uma cor. A de Catarina era azul, a dos tios, amarela. Na frente o terreno era compriiiido — tinha lugar para um balanço, brincadeiras de rolar pneus, e uma piscina de plástico no verão. O quintal era todo gramado e com árvores dos lados. Os vizinhos todos tinham crianças, e Catarina, a irmã, as primas e os amigos brincavam até o começo da noite na rua em que quase não passava carro.

Lá pelas tantas os pais gritavam:

— Huguinho Zezinho Luizinho! Batata frita!

Todo mundo ia pra casa comer, todo mundo bem sujo e fedorento.

Atrás das crianças iam os cachorros, que também passavam os dias zanzando pelas ruas do bairro ainda quase fazenda. Os machos atrás das fêmeas no cio. Às vezes passavam dias fora e voltavam todos esfarrapados. Naquela época não se castrava os cachorros e não os prendiam em muros e portões.

A casa de Catarina não tinha portão, e o muro qualquer cachorro e criança pulava.

Às vezes os cachorros voltavam especialmente fedidos. “Rolou na carniça, põe esse bicho pra fora!”, gritava a tia.

O tio era médico de um hospital de crianças pobres, que moravam em bairros muito longe da quase fazenda, ou que moravam no hospital mesmo. Todas elas tinham doenças graves e às vezes terminais. Para alegrar as crianças pobres que viviam no hospital, o tio às vezes as trazia para passar um domingo em casa, para que brincassem e tivessem alguma alegria.

Num domingo desses veio entre a criançada uma menina um pouco mais velha que Catarina. Bonita, quieta, participava das brincadeiras com timidez. A menina tinha uma barriga grande. Dura e redonda.

— Tio, por que aquela menina tem essa barriga?

— É uma doença que ela tem.

Quando Catarina ficou adulta, um dia acordou se dando conta de que carniça é bicho morto.

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Alessandra Nahra
CRÔNICAS

Escrevo, planto, estudo, viajo. Falo com bichos, abraço árvores, e vice-versa.