Carta àquela que se fez árvore

Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS
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3 min readMay 18, 2018

Ou: de quem está longe, mas está dentro por ser pequena e grande

Sei que você está longe. Sei que, nesse momento, deve estar sentada — olhos mirando a parede de casa, parede amarela. Olhos que esperam. Paciência. O vai-e-vem ao redor, a cabeça longe. Olhos mirando pernas, panelas e paredes. Longe como estou, talvez ainda mais longe, a mente tem poder de se transportar infinito.

Sei que você está longe, as mãos não tão firmes, manchas, veias, pele e osso. Mãos que já cuidaram, amaram, cozinharam, já passearam através de anos possíveis. Mãos que continuam a carregar forças invisíveis em forma de fragilidade. Ledo engano.

Sei que você está longe, a respiração mais difícil, o corpo franzino que diminui e diminui e diminui. Despedida da Terra, ideia de ser semente — ideia de que estamos, certeza de que somos muito mais do que vemos.

Sei que está longe, que talvez não me ouça — voz perdida no espaço do agora, eu, tão imediatista. Imagino que esteja, embora os emboras da vida, com um sorriso doce, boca que só choveu palavras de açúcar. Menina. Sempre fui sua menina, todos foram meninos para você, tão grande em tão pouco corpo. Corpo que vai se encontrando com o que tem dentro, se entregando para o dentro, interior que é você. Somos algo que nem vemos, não é assim?

Você é tanto. E eu queria muito dizer isso para você. Que você é muito, que é uma gigante. E eu tão longe, minhas mãos tão inexperientes — mãos novas que muito pouco amaram e que ainda precisam tanto do tempo, mãos que buscam a janela, que querem dançar com o vento e o tempo, se lançar no ar, desenhar ondas. Mãos que querem te alcançar.

E meus dedos tentam escrever algo que, mesmo de longe, possam te tocar. A velocidade do que sentimos, intocável, intraduzível. Cabe o que sentimos na palavra amor?

Sei que está longe, corpo estático em tanta passagem. Piscadinhas lentas, sem pressa de engolir o tempo, mas tão rápidas para captar o momento, a realidade. Corpo sem a cegueira a que somos impostos quando novos, corpo-janela que se abre com o passar das horas. Tudo passa tão rápido.

Daqui te vejo ao lado da janela de casa, a cabeça apoiada em mãos e o mundo que plantou lá fora. Corpo-semente que semeia e colhe. Tanto, tanta vida. Árvore. Sabedoria de ser árvore, ter raízes, ser tronco, dar frutos — e balançar-se com as histórias, brisas que passam soprando encontros e despedidas. Ser árvore antiga e ser espera do que lhe é necessário: frutos meninos e meninas.

Sei que está longe, mas espero que saiba que está perto, dentro. Quando me encontro covarde, te lembro Fênix. Força feminina, útero generoso, corpo que acolheu tanta vida em braços, em alma, que fez dormir e acordar tanta vida, que fez sonhar tanto. Infinito possível.

Sei que está em mim. Então, sussurro. Digo tudo isso em forma de oração, porque você está aqui, pequena coube em mim. Pequena, me fez crescer.

Sei que me escuta. Que se emociona com qualquer palavra doce, porque se reconhece na bondade que ainda há no mundo. Transmutação. A beleza que há em almas puras.

Sei que está em mim. E por isso prometo cuidado, força e esperança de um dia também ser árvore. Serei alguém melhor por te carregar em mim, sentirei o tempo e o vento — dançarei e darei risada da vida. Sorrirei porque está em mim. No sangue que corre, no calor do corpo. E por isso serei sempre sua menina, a menina de sua menina, e eu mesma colherei meus meninos e meninas no caminho que percorro, tão longe.

Sei que está em mim. Sussurro. Obrigada por ser e me deixar ser, vó.

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CRÔNICAS

Crônicas, contos, resenhas e rabiscos. Por Ana Lis Soares.