Contificando — Depois da última noite de festa

Às sete horas da manhã do dia errado

Guilherme Oliveira
CRÔNICAS

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O desafio: escrever pequenas histórias baseadas em músicas. O Contificando de hoje é inspirado em “Camila, Camila” — Nenhum de Nós (Nenhum de Nós, 1987) e “Natasha” — Capital Inicial (Acústico MTV, 2003). Ouça antes, depois ou durante a leitura, o que achar melhor:

https://www.youtube.com/watch?v=LY6DrSU5v2A
https://www.youtube.com/watch?v=L2s9rSEJlfQ

“E você olha pra mim quando eu tô falando com você!”, ele gritava, cuspindo. “Porra!”, pontuou.

Ela queria olhar, mas mal conseguia abrir um dos olhos depois do tapa. Queria falar, mas sentia o lábio inchado latejar. Prostrada no chão, encostada ao pé da cama, não sabia se erguia os braços para se proteger ou se usava-os para rastejar, se afastar dele. Não sabia se ele bateria de novo.

Enquanto isso, ele gritava.

“Amigo o caralho! Porra de amigo! Não tem essa porra! Ele quer é te comer e você fica dando mole!”

Levantou-se e correu para o banheiro. Trancou a porta, ligou o chuveiro para abafar os gritos e deixou-se cair embaixo da água. As lágrimas vieram finalmente, depois do choque, e cada soluço fazia o rosto doer.

Eles haviam ido para uma boate. Alguma coisa relacionada à faculdade dela. Agora era difícil lembrar. Estava tudo bem. Ele havia sido carinhoso a noite toda. Mas a flagrara conversando com um amigo, bem na hora em que eles riam de qualquer coisa e ela pousava a mão sobre uma das pernas dele.

Depois de muita discussão, empurrões e copos quebrados, ela conseguira convencê-lo a irem embora. Havia, ela percebeu, algo de insano em seus olhos. No caminho de volta, não trocaram nenhuma palavra. Ao chegarem no apartamento dele, onde ela passaria a noite, começara a discussão.

Ele dissera que ela sempre fazia isso, que se não queria mais saber dele era melhor falar logo e que ele não ia mais fazer papel de otário. Ela insistira que tudo não passava de um mal-entendido, que ele provavelmente havia bebido demais e que era melhor irem para a cama. Ele berrara que não iria para a cama com vagabunda nenhuma. Ela respondera que não era vagabunda. Foi quando veio o tapa.

Não era a primeira vez.

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“Meninas, hoje temos uma colega nova. Se apresente por favor, querida, e conte a sua história pra gente. Não precisa ter vergonha de nada. Aqui todo mundo passou pelas mesmas coisas”

Camila estava numa reunião de um grupo de apoio, organizado por estudantes da faculdade. Escolhera um lugar mais na ponta do semicírculo de moças e mulheres, esperando não chamar atenção. Pretendia só ouvir. Saber se o que passava com o namorado era tão grave quanto suas amigas diziam. Falar diante das outras não estava no plano. Entrou em pânico quando a mediadora dirigiu-se a ela.

“Não, eu… vão vocês… eu não…”, gaguejou.

“Claro, colega, claro. Sem pressão. Aqui você tem que estar confortável. Pode só dizer o seu nome?”

“Ana Paula”, inventou. Não queria deixar traços de que estivera ali. Se ele soubesse…

Então ela ouviu. Histórias de agressão verbal, física, sexual até. Ela, que tinha apenas 17 anos, horrorizou-se ao ver aquelas mulheres mais velhas, aparentemente tão bem resolvidas, desfazerem-se em tremores e soluços enquanto reviviam, em voz alta, suas experiências.

A única coisa que conseguia pensar é que tudo soava familiar. Não conseguiu conter uma voz em sua cabeça que dizia “eu sou você amanhã”. O sentimento de traição, de confiança punida com desprezo. A insegurança dentro da própria casa, na própria cama. O medo de perdê-lo misturado com o pânico de nunca conseguir se ver livre dele. Tudo isso era conhecido.

A dor. No rosto, nas pernas, nas costas, na raiz dos cabelos. Ser puxada pelo antebraço, pela nuca. Ser manipulada em público como um copo de cerveja, como um maço de dinheiro a ser constantemente tirado do alcance dos outros.

Tudo isso ela conhecia, e se assustou ao pensar que poderia ficar mais crítico. Só não esperava que fosse tão cedo.

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Não sabia quanto tempo havia se passado desde que entrara no banheiro. A água ainda corria, abundante, mas agora ela ecoava contra as paredes de porcelana, sem ser desafiada por ruídos da rua. Lentamente ela se ergueu e hesitantemente desligou a cascata que a confortava. Tudo parecia quieto do outro lado da porta também.

Ele estava adormecido na cama, atirado de qualquer jeito sobre os cobertores, roncando. Havia tirado a camisa e um dos sapatos apenas. Ela se aproximou com passos curtos. Por um momento pensou em se aninhar ali também, ao lado dele, e esquecer. Deixar para trás um arroubo, um acidente. Pela manhã tudo estaria como antes.

E como antes era bom, por acaso?

Passando a mão pelo rosto, sentiu o inchaço na face esquerda. Um resto de gosto de sangue se prolongava em sua boca. A mão dele, agora ela percebia, até estava um pouco vermelha.

Contornando a cama, viu o celular dele meio escondido sob um travesseiro. Apanhou-o e acionou um botão, fazendo acender a tela. Um site de pornografia a cumprimentou do pequeno visor. Olhando de novo para o namorado, Camila viu que ele tinha o zíper da calça aberto.

Uma curiosidade levemente mórbida a fez ponderar se ele havia usado a mesma mão com a qual a estapeara.

Atirou o celular em qualquer lugar. Deu as costas ao homem inconsciente que, dali para frente, ela faria um grande esforço para jamais esquecer. Sentia-se transformada e pretendia sempre lembrar o porquê. Saiu pela porta em direção à manhã que começava.

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O cigarro que ela sacou da bolsa foi prontamente saudado pelo isqueiro do rapaz sentado no banco ao lado. Os dois estavam sozinhos no balcão, mas só ele bebia. Ela estudava o ambiente, acariciando as madeixas de cor esmeralda. Ainda se acostumava à nova cor, mas admirava o próprio reflexo sempre que tinha a chance. Conseguiu se vislumbrar no isqueiro de metal que a servia. É. Caía bem.

“Cigarro dá uma sede, né? Posso te oferecer alguma coisa?”, perguntou ele, rápido no gatilho. Vira a mulher em necessidade e prontamente agira, preenchendo a brecha e agarrando a oportunidade. Ela sabia. Por isso puxara o cigarro.

Como resposta, uma tragada.

“Pode escolher o que quiser. Eu não poupo esforços pra agradar uma mulher que nem você, pode ter certeza”, avançou ele.

Ela riu e atirou a cabeça para trás, calculadamente. Como se não soubesse que ele jogava aquela ladainha para cada rabo-de-saia que se demorava mais do que cinco minutos na sua presença. Provavelmente não tinha o suficiente nem para o próprio drinque. Mas resolveu comprar o blefe. Virou-se direto para o barman e pediu: “Um mojito”. Estendeu o braço e passeou um dedo pelo ombro do rapaz. “Ele paga”, completou.

O toque foi a senha para ele chegar mais perto. “Posso saber o seu nome, lindeza?” (“Lindeza, ha!”, pensou ela). “É que eu gosto de saber exatamente pelo quê eu agradeço a Deus quando eu rezo de noite”.

Há tempos ela não ouvia uma tão ruim, mas esses eram os mais divertidos. Deu corda. “Natasha”, disse Camila. Era um que ela já havia testado algumas vezes e gostara dos efeitos que causava.

Funcionou. Ele arregalou os olhos e parecia excitado. “Nome de princesa, sabia? A princesa da Rússia. Natasha. Sabia? Filha do… aquele lá… do kaiser!”. Era tão engraçado. “Nome lindo. Combina com você”. Ele passou as costas da mão pela bochecha dela. A mesma que havia levado o último golpe. Mas ela não sentia mais nada.

A conversa continuou, ou quase isso, pois ela não falava quase nada e ele tagarelava solto. De vez em quando disparava uma pergunta ou outra. Ela respondia selecionando uma das mentiras do arsenal que tinha reunido ao longo dos últimos meses. Serviam para ele continuar falando. Para encorajá-lo. Para aproximá-lo.

Cada movimento premeditado dela o deixava mais esperançoso, e vê-lo assim — ver todos eles assim — era o motivo pelo qual ela saía de casa todas as noites, procurava um bar promissor, sentava em um banco visível, cruzava as pernas que mal se escondiam sob a saia e esperava — geralmente muito pouco.

Ele falou sobre tudo e todos, e quando esgotou o repertório de papo-furado lançou a pergunta que estivera esperando para fazer desde que botou os olhos nela: “Escuta, vamos sair daqui?”. Tudo no tom de voz dele indicava que não tinha dúvidas de que a resposta seria positiva. “Vamos pra um lugar mais tranquilo?”

Era o momento de dizer a única verdade que ela pronunciaria a noite inteira. Puxou-o pelo pescoço, com os dedos entrelaçados nos seus cabelos, aproximou a boca da orelha dele, deu uma bafejada e uma leve mordida e sussurrou, lentamente:

“Vai se foder”

O olhar atônito, frustrado e estúpido dele foi a última coisa que viu antes de desaparecer. Saiu gargalhando. A vida era bela.

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