Cores e belezas secundárias

Ana Squilanti
CRÔNICAS
Published in
2 min readFeb 26, 2018

São Paulo é cinza até que você consiga ver um pouco de cor nela. Pode ser difícil. A monocromia parece prerrogativa dos meios urbanos e o olhar acostuma. Talvez os olhos se embacem com toda a fumaça que sai dos escapamentos, ou talvez passe pouca luz pelos espaços que mal existem entre os prédios, e ninguém enxerga bem no escuro.

Com a vista boa você vê que tem um espaço cultural no meio da estação do Brás, entre o metrô e trem, onde toda semana há alguém fazendo um som ou encenando uma peça. Que há um bebedouro de água em frente ao prédio da Gazeta, bem na Avenida Paulista, escrito “Hidrate-se”. Que na rua Pelotas, na Vila Mariana, mesinhas de metal se abrem quando o sol de põe, entre a banca e o pequeno sacolão, e carecas e grisalhos jogam damas.

Tem muito colorido nas calçadas se você desviar o olhar do chão, do além ou do celular enquanto se desloca. À meia altura te garanto que toda manhã vai encontrar carrinhos de frutas. Ambulantes fixos que adoçam sua vida a caminho do trabalho.

Na Alameda Santos com a Manuel da Nóbrega se vendem laranjas, ameixas, às vezes caquis. A duas quadras dali, na Oscar Porto com Maria Figueiredo, abacaxis. Um tipo de fruta só, especialidade daquela esquina há 8 anos.

Ontem, enquanto eu cruzava essas ruas, assisti uma kombi estacionar ali. Por um segundo pensei que eram mais funcionários, ou mais frutas a serem descarregadas, até ver na lateral do carro “Cidade Linda” estampado ao lado do SP em coração.

Desceram seis homens, dois guardas, cataram os coroados um por um, colocaram tudo na Kombosa e partiram. Não sobrou um amarelinho no suporte de madeira. Amarelo ali, só ficou o sorriso do Jonas, vendedor e agora viúvo da mercadoria.

“É…”, deu de ombros, “tão fazendo isso agora. É o novo rapa”. Ficamos eu e a senhora que sempre pede um de massa-branca, “O outro é doce demais! Gosto do azedinho”, olhando o ganha pão do homem e nosso lanche se afastar.

“Disseram que é denúncia”, falou quando perguntei porque fizeram aquilo. “Denúncia de quem?”, questionou a outra senhora que chegava do passeio com o cachorro. “Todo o bairro compra aqui!”.

Jonas ergueu mais ainda os ombros. Tanto faz os motivos, ninguém segura o novo modus operandi da capital. A lindeza da cidade está em tirar as cores dos muros, das ruas e das relações. Senti o clima de interior e humanidade ir embora ao passo que o carro símbolo da contracultura se enchia de outros significados.

São Paulo ficou mais cinza ontem, e eu estava com os olhos bem abertos.

Essa crônica foi inicialmente publicada na newsletter “Crônicas da vida alheia”, que tenho com a Thaís Campolina. Gostou? Assine aqui para receber textos quinzenalmente.

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