Das cartas que recebo: ‘elucubrações’

mark cardoso
CRÔNICAS
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3 min readDec 18, 2017

[ Para Mark ]

Querido,
Hoje, choveu horrores aqui no Recife. Pensei no nosso compromisso, nas palavras que havia reservado para você, na dor de cabeça insistente que há nove dias não me deixa em paz. Imaginei que um pouco mais ou menos de tempo não mudaria nada, enfim. Como pude?

Foi nesse cambalear de coisas não ditas que perdi o bonde da tua vida. Que não estive lá quando o teu para-sempre virou sopro e se derreteu no peito, escorreu pelas pernas e voltou para um desses lugares sem nome que você descreve tão bem mesmo quando não está falando nada com nada. (Eu pego no ar.) Há quantos anos nos conhecemos? Não sei com exatidão. Sei que éramos jovens e vivíamos em êxtase diante da ideia de uma palavra. Escolhíamos frases a dedo e nos sentíamos como seres especiais que guardam um poder dado aos escolhidos. Éramos tão arrogantemente leves.

Lembra dos silêncios que gritam?
Onde eu estava quando tudo o que foi dito já não era mais capaz de provocar o outro?

Foi por essa mania escrota de achar que tenho o direito de só cultivar as relações quando me sobra tempo que passei batido do dia em que você trocou de cidade. Dos projetos encaixotados e das janelas imensas que se abriram quando você respirou de novo pela primeira vez.

Não sei se já te disse, mas admirava aquele teu jeito meio insano de assimilar as coisas que a vida te jogava no colo. Era bola para cima e cortada no chão. Um ponto, dois, três. As partidas pareciam sempre ganhas. Mesmo quando havia medo (e eu sei que havia). Mesmo quando esfriava tanto que sair da cama doía. E lá estava você. Tão novo, tão imaturo, mas tão você. Hoje, descobri que te admiro por outras razões. Um dia, não tão longe, prometo, te direi.

Da última vez que nos falamos, não vi mais aquele cara atrás dos óculos. A pressa, a urgência, a necessidade disso e aquilo. Inspira, expira, inspira. Não era mais o cara das redes, dos manuais, da agenda cheia e do orgulho de não ter um minuto para o café. Não mais. Talvez eu esteja errada e tantas elucubrações sejam somente fatias de um presente ainda meio desarrumado, de um estado de ser que você ainda não vestiu (ou despiu?) completamente.

Talvez.

Só não me diga que não sei de nada, que não estive lá, que cães e caravanas passaram e deixaram um fio solto. (Nem sei porque te peço isso. Não é algo que você diria. Criamos uma sala de estar onde entramos e saímos como e quando queremos com tudo o que isso tem de bom e de ruim).

Hoje vim somente te trazer uma xícara de chá, deitar a cabeça no teu colo e pedir que me conte uma história qualquer. Um sonho, quem sabe. Ando cansada. As crianças estão dormindo. Crescem a olhos vistos e eu fico tentando parar esse trem em algum lugar seguro. Como se.

Você sabe. No fundo, e de alguma forma, você sempre sabe.

Nat
29.03.16

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mark cardoso
CRÔNICAS

“As mais belas historias têm começo, medo e sim” ~ literatura, branding, psicanálise e palavras. Autor de "Posta-Restante": www.postarestante.com.br