Deixe a esquerda livre

Nickolas Ranullo
CRÔNICAS
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3 min readMar 8, 2018
Foto: Entre Todas as Coisas

Dizem que São Paulo não para, não dorme. Eu percebia isso enquanto via os trens indo e vindo, pela plataforma. Algumas centenas de pessoas devem ter passado por mim, cada uma com sua individualidade, cada uma com sua pluralidade.

São Paulo encanta, sabe?

Eu me acostumei a multidões, embora nem sempre me sinta à vontade no meio de uma. Meus olhos se acostumaram a ver as pessoas indo e vindo, ainda que eu não repare em suas diferenças de traços, de estilos. Com ela, porém, era um pouco diferente.

A primeira vez que ela apareceu pra mim, foi como uma dessas surpresas. Eu olhei para os lados tentando encontrá-la e, quando menos esperava, ela surgiu bem ali na minha frente. O cabelo com todos os cachos, os óculos meio arredondados, os olhos castanhos, o nariz que parece ter sido desenhado em um rápido e preciso desenho, a boca com seu suave destaque, as pintas na bochecha, a blusa xadrez e a calça jeans rasgada. Um “oi!” e eu sabia que não poderia, um dia, haver um “adeus”.

Desde a primeira surpresa, eu aprendi a vê-la de longe. Seja com os cachos soltos ou em um coque que ela chama de abacaxi, como o que ela usa hoje. Eu então sorrio. Pra ela e, principalmente, por ela. Hoje ela estava com a jaqueta jeans pendurada nos ombros. A bolsa em um tom de bege, talvez — eu sou meio daltônico, acredito. O vestido preto, que ia até o meio das coxas, me despertava fantasias que minha imaginação já despiu em outras oportunidades.

Um “oi” sorridente pela parte dela e São Paulo, a cidade que nunca para, que nunca dorme — como eu que não durmo em mais uma dessas madrugadas enquanto escrevo — parece diminuir seu ritmo. Em tempos onde preconceitos se multiplicam, onde o ódio torna-se gratuito, onde o medo ganha esquinas, o amor pede destaque, pede tempo, pede passagem — e acredite, entre passar e ficar, ele prefere deixar a esquerda livre pra quem quer seguir e, por fim, fazer morada no lado esquerdo do peito.

Eu gosto de olhar pra ela. A inquietude dela me é engraçada. As pernas cruzam-se e descruzam-se com frequência, enquanto estamos sentados, conversando e brincando em um dos vagões do metrô. Os pés, com os all-stars brancos, balançam. Ela é ansiosa. Às vezes tenho a impressão de que, se eu a soltar, ela corre pelo mundo. Eu, então, prefiro a trazer pra perto e mostrar que o mundo é logo ali e que eu quero conquistá-lo com ela.

Ela cruza seus olhares com os meus, de vez em quando. As sobrancelhas, desenhadas, mostram que às vezes ela não entende o motivo de eu tanto olhar pra ela. Um beijo, um sorriso e então o rosto alivia-se, parecendo entender que eu a olho tanto, por ter me encantando com uma alma de menina em corpo de mulher.

São Paulo nunca para, nunca dorme. É o que dizem. E quem diz nunca viu como o mundo desacelera pra ver um amor passar. Pra ver um amor ficar.

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Nickolas Ranullo
CRÔNICAS

"Não digam a minha mãe que sou jornalista, prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel".