"Que gaveta eu abro, agora?"

Diário de um analisando #10: 'Vai passar'

mark cardoso
CRÔNICAS
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4 min readNov 22, 2017

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Sentamos, eu e a minha jaqueta de moletom surrada.
— Está com frio? — ela me pergunta, cuidadosa, olhando para o ventilador.
— Não. Foi só preguiça de escolher roupa direito mesmo — respondo, meio displicente.
E a gente ri.

Comento que li um texto de Bruce Fink sobre o 'ego experienciador' e o 'ego observador'. Digo que me fez lembrar daquela animação em que os personagens são os sentimentos (raiva, felicidade, tristeza, nojinho…) da menina, comandando ela de dentro de sua cabeça. E que cada um assume o comando, em dado momento.
— A sensação é de que, às vezes, um desses dois "egos" está com mais potência.
— …
— Não! A minha real sensação é de que meu ego observador está na cabine de comando. E ele deixa o ego experienciador explorar o mundo. Mas não dorme em serviço! A cada atitude ou ação feita ou sofrida pelo meu ego experienciador, o observador tá ali, pronto para dizer pra si mesmo o que está por trás daquilo tudo.
— …
— E o raciocínio se desenrola até o final do texto, que se encerra dizendo que o analista também é como um artista: revelam algo que está ali, já está ali esperando para ser ouvido, mas que não é ouvido sem a sua ajuda — e aqui, ao final da sessão, percebo que foi onde eu acendi o sinalizador de fumaça, daqui da ilha em que todos estamos.

Conto de um sonho com a ex, o cachorro, o prédio… nada demais.
Conto de novos tramites judiciais… nada demais.

E aqui. Bem aqui. Exatamente aqui! Entro na solitária. No quarto do silêncio. Na irritante e angustiante cela do 'nada a declarar'.
"Angústia é o único afeto que não engana", disse Lacan.

E ali fico.
Mas desta vez, resolvo declarar isso!
— De novo, chego àquele ponto, um tanto irritante, do silêncio e àquela fase de ter preguiça de vir para a sessão… — solto, após alguns minutos cheios de nada.
— …

E ali continuo.

Mirando perdidamente o abajour, à minha esquerda, um momento eureka me ocorre.
— É isso… — e tomo fôlego, enquanto concateno melhor as ideias que acabaram de me ocorrer para saber como melhor colocá-las em palavras.
Ela se ajeita em sua poltrona de veludo antigo.
— Eu me sinto irritado por voltar a me sentir andando em círculos, correndo atrás do rabo — digo. E disparo de forma acelerada: — Me sinto incompetente, frustrado, ineficiente! Não sei mais para onde olhar, aqui dentro; de onde mais tirar material. (pausa) E quando me lembro de você dizendo, há uns meses, "eu sei porque você faz análise", eu fico ainda mais irritado nesse estado de não-saber. E acabo fazendo uma leitura sadomasoquista disso tudo: você sabe; eu não sei; isso é motivo de angústia pra mim; eu continuo a me submeter.
— Mas a análise é sua — diz, de forma serena.
— Muito confortável você dizer isso! — retruco elegantemente, mas retruco.
— É preciso desconstruir a figura do analista. Figuras de autoridade, pai, mãe, professor, que forjaram seu Superego.
—Entendo, mas não consigo fazer essa correlação. Porque tem gente que se inibe de falar de certos temas, de desejos obscuros, de putaria na presença do analista. E eu não sinto isso.
— Tem muita gente que faz análise, gente inteligente, erudita… acha que fez análise, mas não fez, não. Fez uma, digamos, pós-educação. (silêncio) Mas você, não. Você está aqui para se libertar.
—Sim. O que tem me irritado é não enxergar mais os grilhões.
— Mas você vai ver… vai ver. Ou não…
Grrrrrrr!
— Hahaha.
— É sério! "Você e sua mãe, a memória do passado conflitua com o hoje blablabla…", "Você e seu pai, blablabla…", "Você e sua irmã, na posição sistêmica em que você foi colocado blablabla…", "Você e suas relações blablabla…", "Você e o real amar blablabla…", "Você e a sublimação blablabla…", "Você e as pulsões blablabla…" …sensação, ingênua ou não, de que já passei por tudo — respiro fundo, cansado.
— Joga tudo isso fora… Tá cheio. Tá atrapalhando. Joga fora…
— … (fico pensativo, com medo de julgar isso autoajuda demais).

—Sessão ombudsman – digo, irônico.

(após uma breve pausa)
— Mas voltando à reflexão sobre a minha irritação… sabe? Eu me sinto mal de me perceber esperando algo de você, como que querendo demandar algo de você.
— Mas por que, se vivemos de esperar coisas dos outros? E eu percebo essa demanda…
— Eu sinto que eu não posso, não devo. Como se fosse contra as regras disso aqui — confesso.
— Você tem que falar… “que gaveta eu abro, agora?”, “pra onde eu olho?”.
— Ah… se eu soubesse, antes, que podia.

— Você não está cabendo em si.
— Ótimo! Eu cheguei aqui com muito espaço sobrando entre mim e a fôrma. Agora, estou transbordando?
Ela consente com a cabeça.
— Tô precisando trocar a calça 38 pela 42.
Ela ri, mudamente.
— Até sábado?
— Mas já?!
Ela sorri sem mostrar os dentes — sua marca registrada.
— Que exaustão… — desabafo, estendendo a mão com o cheque.
— Que bonitinho: já trouxe assinado — ela debocha, de brincadeira.
— Eu aprendo rápido :)

Eu nunca me senti cansado, após uma sessão.
Estou.

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mark cardoso
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“As mais belas historias têm começo, medo e sim” ~ literatura, branding, psicanálise e palavras. Autor de "Posta-Restante": www.postarestante.com.br