Diário de um analisando #11: Criança linda

mark cardoso
CRÔNICAS
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4 min readDec 22, 2017

Era a última sessão do ano. E eu quase não consigo chegar a tempo… o que me angustiou um pouco, já que havia tanta coisa a ser dita.

— Domingo, eu resolvi assistir imediatamente a um filme que me indicaram por mensagem. Baixei e comecei a ver. Quando acabou, a cena final me fez entrar numa espiral intensa de choro — conto eu. — O filme chama ‘A Ghost Story’ e fala, de forma bem conceitual, do processo de luto do fantasma de um cara que morre de repente: da negação e raiva até a depressão e aceitação.

Não estou olhando para a analista, mas sinto que ela me observa mais atenta do que de costume. Ou será apenas a projeção da minha relação eu<>platéia?

— O filme inteiro é o processo de luto desse fantasmão, que fica vagando na tela com um figurino bem naïve, com um lençol enorme e dois furos no lugar dos olhos. Ele se atormenta e atormenta as pessoas, no passado, no presente e no futuro, até que ele encontra um bilhete com uma verdade que faz ele desaparecer instantaneamente. E na hora, eu pensei na “pecinha que faltava do meu quebra-cabeça de 2 mil peças”, que me fez chorar, aqui, algumas sessões atrás, lembra?

Dia desses, um amigo meu veio comentar, após uma sessão dele, suas maluquices internas. “Nossa… eu que andei pensando em me dar alta, tive uma sessão maravilhosa. Será que não rola uma Síndrome de Estocolmo? A gente vai gostando de estar ali e vai criando questões e narrativas pra continuar ali?” Eu ri e chamei-o de louco. Conto pra ela. Ela gargalha comedidamente, sem fazer barulho — se é que isso é possível.

— Pois bem, sua sequestradora! — disparo. Gargalhamos juntos. Eu com som e ela, mudamente.
—Isso me faz lembrar Carl Carls, um jornalista de Viena que era detrator de Freud. Ele dizia assim: “a Psicanálise cura as doenças que ela própria inventa”.
— Hahahaahaha. Muito bom.
(breve pausa)
— Mas sabe… — ela ensaia dizer algo. — A Psicanálise existe para manter a criança viva…
Eu fico bastante pensativo.
— Isso me faz pensar na teoria da constelação sistêmica, que fala que cada adulto tem em si a criança que foi e ela representa o emocional daquele adulto, além de conectá-lo com o inconsciente coletivo do emocional da família, do sistema no qual ele está inserido. É algo assim?
Ela não me responde. Como muitas vezes acontece.
—Ser criança é um eterno estado de torpor, de alucinação… E até os 10 anos, formamos o emocional que carregaremos para o resto da vida.
— Como um sistema operacional.
— Exatamente. O software que vai decodificar tudo o que você recebe e codificar tudo o que você emite, ao longo da vida.
— Assim como essa “criança” linda que, hoje, resolveu vir brincar.
— Vim até de boné pra trás, hoje, né? — digo, levemente encabulado. — Mas é… tem dias que a minha criança tá de bico e braços cruzados. Hoje, ela falou: “tia, vem cá pra eu te mostrar o trenzinho que eu ganhei”.
— Me fale de um natal seu… — ela emenda.
E eu conto da aura natalina que minha família sempre fez questão de construir nos novembros-dezembros, lá em casa.

Encerro a sessão falando de todos os casinhos que surgiram na última semana e que eu deixei fluir de forma suave… alguns para o ralo; alguns para a estante das possibilidades. Isso me lembra uma amiga, do Rio, que me escreveu: “ser casado é ótimo. Mas ser solteiro é lindo”. A quem eu disse: “é como preferir loira ou morena: não tem dessa, não! Tem só que saber e querer descobrir a beleza de um e de outro”.

— Ah! Meu melhor amigo, acompanhado de outro amigo, veio me dizer que eu estou mais bonito. Daí quando eu sorri, ele disse: “não… bonito você sempre foi. Tô falando de outra coisa. Tem algo diferente, mais leve, aí dentro” — conto a ela. — E eu fiquei muito feliz e satisfeito de, pelo visto, ter conseguido fechar um ano tão pesado como este de forma leve e bonita.

— Quinta, na semana que vem? Pra você voltar de viagem tranquilo…
— Pode ser… boas festas.
— Pra você também, querido.

> que 2018 venha leve.

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mark cardoso
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“As mais belas historias têm começo, medo e sim” ~ literatura, branding, psicanálise e palavras. Autor de "Posta-Restante": www.postarestante.com.br