Diário de um analisando #13: Eclipses

mark cardoso
CRÔNICAS
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2 min readJan 11, 2018

— Você evocou muitas vezes o fim, hoje — pontua a analista, quebrando o seu longo silêncio daquela noite.

Abri a sessão falando do atropelamento que, poucas horas antes, não cheguei a presenciar, mas a passar pela trágica cena de caminhão de bombeiros, sirenes de carros de polícia e um corpo no asfalto, coberto por um lençol branco. Falei também que, minutos antes dessa cena, havia recebido a mensagem de um amigo que lamentava seu diagnóstico de Hepatite B. Falei que isso me lembrou da fragilidade e vulnerabilidade do corpo, de que no natal de 2015, minha irmã quase sofre uma septicemia por conta de uma cutucada de cutícula do pé com material inapropriado. Falei ainda do meu pai que, em meados da década de 1990, ficou neurótico supondo ter Aids, depois de ler a famigerada reportagem que foi capa da TIME. Falei que, às vezes, choco as pessoas por dizer que não gostaria de morrer muito velho e que não me sinto ‘deixando coisas para serem vividas mais tarde’.

— Agora me fale de algo bem banal que esteja passando pela sua cabeça…
— Que dificuldade tenho com o banal… — digo, meio sorrindo, após um minuto pensativo.

— Uma sessão profunda… — ela comenta.
Eu sorrio por não ter o que dizer.
— Iniciado o ano… retomamos então nosso horário às terças?
— Sim.

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mark cardoso
CRÔNICAS

“As mais belas historias têm começo, medo e sim” ~ literatura, branding, psicanálise e palavras. Autor de "Posta-Restante": www.postarestante.com.br