Diário de um analisando #5: _________

mark cardoso
CRÔNICAS
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2 min readOct 11, 2017
"Você aí! Pode ir pra casa…"

— Hoje, tive um sonho muito interessante! — digo, meio segurando um riso, ao me aboletar naquela poltrona de um veludo marinho gasto.
A Analista se ajeita em sua poltrona gêmea da minha e fecha os olhos, como quem quer se concentrar.
— Sonhei com ________ sequestrando o meu local de trabalho. Nenhum rosto familiar entre todos que estavam naquele ambiente de pé-direito enorme, mármore branco e muita luz natural. Com um refém nos braços, bradava qualquer coisa. Eu, com medo do inesperado, me escondi atrás de uma pilastra larga, abaixado. Em dado momento, quando enfim ousei cruzar olhares, fui imediatamente libertado — eram 3 horas, na madrugada, quando acordei deste sonho.

Eu, que costumo falar olhando para o nada, nessa hora, vi um sorriso de "elementar, meu caro Watson" vir do lado de lá da sala.

— Isso de 'ao nos vermos, fui libertado' ficou ecoando na minha cabeça o dia todo — complemento.
— Você sabe: numa produção de sonho, todos os personagens envolvidos são, de alguma forma, nós mesmos…
— Sim… Eu me libertei de nós. E eu me libertei daquele mim — reflito. — Foi como um remake conceitual do fim.
— O que havia de você mesmo, naquele Outro, que você gostava e queria aprisionar?
— xxxxxxxxxx… e com tantos 'eu também', o espelho acabou posto em ângulo perfeito na frente do Narciso.
(pausa breve)
— Então, a próxima pergunta: o que havia de você mesmo, naquele Outro, que você não gostava?
— xxxxxxxxx…

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— Esse sequestro também fala do seu desejo por dominação… — sinto que ela solta a frase com certo excesso de cuidado.
— Não tenho dúvidas! Eu me interesso por e desejo dominar aquilo que eu sei que, se eu deixar, também pode me dominar.

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— Olha… quando a gente escolhe o caminho da Psicanálise e ela nos escolhe, essa coisa de inconsciente mesmo… Quando isso acontece, é importante entender que saber a verdade é um caminho sem volta.
— Como eu costumo dizer: o conhecimento que liberta é o mesmo que aprisiona, de alguma forma. (Pausa). …e, sabe, desconstruir o tal do 'amor objetal' tem sido bem interessante.

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— É… sua análise tá começando a ficar muito difícil. Pode aumentar os honorários aí!
— Hahahhahaha! … Não fala em dinheiro que eu fico constrangido e você sabe.
Faz um gesto de desdém com a cabeça e emenda: — Uma das coisas para ser um bom analista é desvencilhar-se disso o quanto antes.

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mark cardoso
CRÔNICAS

“As mais belas historias têm começo, medo e sim” ~ literatura, branding, psicanálise e palavras. Autor de "Posta-Restante": www.postarestante.com.br