Diário de um analisando #6: Choro interno

mark cardoso
CRÔNICAS
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3 min readOct 19, 2017

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Para esta sessão, cheguei cheio de novidades. Tinha até feito uma lista mental e anotações de um artigo, no começo daquela tarde. Mas no inconsciente não se manda muito… portanto, acabei falando apenas da viagem do fim de semana.
Chego me desculpando pelo suposto resfriado que me tomou de assalto tão logo desembarquei da disneylândia da umidade no deserto dos 8%. Me sirvo de água e sento naquele meu lugar.

Começo falando que aquele tempo no Rio foi interessante. "A viagem foi um grande sorriso de canto de boca", arrisquei defini-la.

— E o que você trouxe do Rio? — ela lançou à mesa, rompendo o silêncio típico das audiências atentas.
Pensei um bocado antes de devolver e:
— Não sei se isso responde, mas…
Eu me dei conta de que há pouco mais de 10 anos eu saía de casa rumo a muitas liberdades e primeiras vezes. Naquele Rio. E apresentando a cidade pra gringa, desta vez, fui naqueles mesmos lugares de fevereiro ou de muitos anos atrás: aquele mesmo aeroporto de centenas de idas e vindas, aquele mesmo bistrô francês caro, aquele mesmo instituto verde e úmido na Gávea, aquela mesma praia daquela famosa garota, aquela mesma balada em Copa, aquela mesma sorveteria na JJ Seabra… E não senti arrependimento, frustração, melancolia ou qualquer coisa do tipo. Eu senti acolhimento, sabe? De mim pra mim mesmo. Essa coisa de se perceber tendo saído do lugar de ‘objeto do outro’ para assumir o posto de ‘sujeito desejante’.
E isso foi tão bom…..… (se texto fosse partitura, esse ‘tão bom’ teria recebido uma fermata, indicando "segurar a nota final".)
— Que bonito… você trouxe o seu eu de 23 anos, do Rio, então…
— É… pode-se dizer que sim — digo, sorrindo, olhando pro vazio.

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bzbzbsbzbzbzb, bbzbzbazba…
— Desculpa, não ouvi — digo, me ajeitando na cadeira.
— Eu dizia que, psicossomaticamente falando, um resfriado é um choro interior, um choro pra dentro.
Acompanho admirado.
— Quando passamos por situações que inconscientemente nos tocam, de alguma forma, o nosso emocional… pode ser que choremos internamente, um choro reprimido, metafísico, que vem em forma de resfriado.
—Então eu chorei pra dentro… que bonito isso — digo, pensativo.

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— Até sábado?
— Sim!
— Agora que você já sabe por que chorou, o resfriado logo vai passar.
— Olha, tô aceitando, viu? Me dê uma Catapora, mas não me dê um resfriado!
E rimos, nos dirigindo à porta do consultório.
Com seu gestual já tradicional, de abrir a porta e levar uma das mãos ao centro do peito, diz: "bom descanso".

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Hoje, o dia seguinte, acordei misteriosamente bem. Se foi culpa do xarope que comecei a tomar há menos de 12 horas ou se foi o fim de uma psicossomatização, não sei. Mas foi impactante. Semicético que sou, aguardei até o fim do dia, em observação. E de noite, escrevi à Analista todo o meu espanto:
— Bruxa! Bruxaria!! Até tô com “voz de gripe”, ainda, mas os demais sintomas tão praticamente zerados desde que acordei! Hahahahhaha.

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mark cardoso
CRÔNICAS

“As mais belas historias têm começo, medo e sim” ~ literatura, branding, psicanálise e palavras. Autor de "Posta-Restante": www.postarestante.com.br