Diário de um analisando #9: eu & EU

mark cardoso
CRÔNICAS
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3 min readNov 17, 2017

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Depois de jantar comida típica da cidade (vulgo cachorro-quente, meio desejo de grávida, meio auto-indulgência) com uma amiga, corri para o consultório. A sessão era de reposição, num horário que a rotina estranhou. Chegando lá, um grupo de supervisão estava nos finalmentes

Motivado pelos papos da amiga, chego relembrando — enquanto me sirvo de água e sento em meu lugar — a única sessão-teste que fiz com uma analista anterior a atual, no meu então processo de casting psicanalítico.

— Inês foi tão estranha. Havia um divã, mas ela me orientou a sentar de frente a ela. E aquele olhar inquisidor pra cima de mim… lá, eu me senti obrigado a falar, a ter que falar, a preencher aquele tempo, desejando que ele acabasse logo, desde os primeiros momentos #dateruim. Aqui, na primeira sessão eu senti que eu desejava falar. Nada era obrigação. Nunca foi.
— É… como vejo que, em breve, você será psicanalista, imagino que você já saiba que esse ofício de escuta é muito delicado. Ao que parece, ela não tratou o suficiente, em sessões de análise, o Complexo de Castração dela — pontua, de forma certeira. (eeeeita, transferência! :)

— Tive um sonho bonitinho, há algumas noites. Um sonho, assim, cândido.
A analista se ajeita na poltrona, como quem se concentra para o que virá.
— Eu estava nesta casa… o clima era de tarde de domingo, após almoço de família com casa cheia. As pessoas espalhadas pelos cômodos, fazendo suas coisas. De repente, vem pela porta aquela criança de um ou dois anos, com aquele andar de quem deu os primeiros passos muito recentemente. Eu muito naturalmente e com visível familiaridade, pego a criança e sento-a em meu colo — descrevo. — Quando olho ela nos olhos, me dou conta, mas sem me assustar ou me surpreender, que a criança é/sou eu novinho. Tem o mesmo rosto, o mesmo corte de cabelo curumim, o mesmo sorriso que eu mostrava naquelas fotos dos anos 1980.
— …
— Eu não lembro das palavras exatas, mas o curioso está aqui: segurando em meu colo, olhando naqueles olhinhos de quem observa sem entender uma palavra, eu digo coisas como “não dê ouvidos demais ao outros”, “proteja-se do bullying, mas oh: vai ficar tudo bem!”. Bem naquele estilo Sessão da Tarde de “eu sou você no futuro e te trago uma mensagem”. Com a mesma naturalidade que a cena se deu, ela se desfez: a criança foi pro chão e saiu andando, eu caminhei pra fora daquele quarto, cruzando com minha ex e seu pai…
— …
— Eu lembro que despertei já pensando “que sonho bonitinho. Não posso esquecer, pra levar pra análise”. Achei muito curioso isso de eu sonhar comigo criança, sabe? E lembrei muito daqui, quando você disse, uma vez, que nosso inconsciente é uma criança e que crianças só querem brincar. Eu já sonhei comigo mesmo, claro… mas sempre em posição de narrador onisciente, vendo meu eu contemporâneo interagir com as situações. Desta vez, meu eu contemporâneo estava ali, vivendo tudo em câmera subjetiva, e recebe a visita do meu eu passado. E eu querendo proteger e encorajar eu mesmo no sonho me fala muito dessa minha coisa, dessa minha sensação de que, neste mundo, sou eu por mim mesmo e só.
— É… o seu inconsciente te deu um belo de um presente.
Eu sorrio meio agradecido, meio abobalhado.
— O seu contato com a sua criança é recente.
— Sim… às vezes eu sinto uma jovialidade meio descabida. É engraçado notar. Mas como dizem dos capricornianos: síndrome de Benjamin Button.

— É… tem muito material aí dentro, pra gente, ainda.
— Cê se diverte, né? Tô brincando…
— Me “divirto”, sim.
— É… eu não tava brincando :P hahaha
A analista sorri.
— Sábado?
Assinto com a cabeça, entregando o cheque.

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mark cardoso
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“As mais belas historias têm começo, medo e sim” ~ literatura, branding, psicanálise e palavras. Autor de "Posta-Restante": www.postarestante.com.br