Dia Último
Uma primeira tentativa de mudar a relação com o tempo
Despertador tocou. Desligo-o e volto logo para o modo soneca, já de praxe, para encarar mais um bom dia cotidiano. Mas dormi além, como de costume, fui acordado de fato somente por uma ligação de minha mãe — só que sem ser como nos tempos de escola. Algo já me dizia: hoje é dia. Agora, do quê, eu ainda havia de descobrir.
Chegar elegantemente atrasado aos lugares sempre foi um dos meus problemas. E me parece que até posso vencê-lo, mas é que para isso eu teria que lidar com a vida de outra forma.
Tempo: coisa que nunca tive muita intimidade. O quanto passou? Há quantas noites estou aqui? Quanto dura até chegarmos lá? Há anos desde que comecei a usar relógio só para ser mais um acessório ou ter o prazer de fornecer as horas para pessoas na rua, mas nunca para controlar o momento.
E foi essa mesma constatação, que me fez pensar que essa relação com o tempo já vem da paciência de nascença, da filosofia da calmaria (que até irrita muita gente), cujo nós seguidores pregamos frequentemente o “vai dar tudo certo rapaz”. E deu. E está dando. Mas a gente só percebe isso quando não mede o tempo. O resto a gente desenrola. Planeja só para ter uma previsão, muito mais em razão de saber que no final aquilo valeu a pena e não para conferir se saiu tudo como esperado. Não estar tanto sob controle, mas talvez estar sobre. E quando vemos, estamos perto do que muitos chamam de último dia. Seja uma última aula na escola, de mudança pra uma casa nova, da saída de um emprego ou qualquer outra fase que entendemos como o fim de um ciclo. Dizem que na própria evolução da vida é assim né? Não seria diferente nas tantas coisas que fazemos dela.
Mas ai já ouvi também que seria válido viver como se tudo fosse o nosso último dia. Intensamente. Eu não sei, mas parece que todo mundo sabe que no fundo isso por um instante não funciona. Ninguém quer despedida, apesar de fazê-la. Talvez por que isso interfira justamente com a nossa batalha diária contra os ponteiros do relógio, folhinhas de calendário e com o peso de estar velho e com rugas. Ao contrário, deveríamos encarar como se tudo fosse do zero. Já começa pela divisão da semana: dia útil e FDS. Será que não dá pra quebrar essa segregação de início, meio e fim? Se for ver, tá aí, mais uma medida de tempo. Ai fica difícil fazer algo pela rotina de modo que ela sempre possa ser iniciada pela primeira vez. E para tanto, não é preciso pensar que precisamos quebrá-la ou sair da mesma. Pois, assim como pensei que acordaria em mais um dia com o despertador, acabei acordando diferente — de modo que poderia ter passado despercebido, mas não passou. E isso já muda tudo. Muda tanto que posso encarar agora algo que vou chamar de Dia Último. Por que a palavra “último” não significa somente aquilo que é o mais óbvio, pois ao ver no dicionário encontramos lá de forma tímida, porém objetiva: o atual; presente.
Em princípio ou afinal, se a gente sente tudo como sendo a primeira vez, o tempo nos responde que nunca haverá uma última.
Ops! o despertador ta tocando de novo… tá na minha hora.