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Do que eu falo quando falo de meditação

Igor Nishikiori
CRÔNICAS
Published in
13 min readJun 9, 2015

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Acho que desde que eu entrei na adolescência e me dei conta de que a vida é uma série de erros que se acumulam dentro de uma mochila imaginária que uma hora ou outra será jogada contra sua cara com toda a força possível, adquiri a estranha persona de ser o cara zen da turma. Na faculdade, havia quem me chamassem de MESTRE.

Talvez isso não seja nada além do que uma casca psicológica que por algum motivo meu subconsciente construiu ao meu redor. Um escudo invisível e duro como uma rocha feita para proteger contra impulsos e movimentos não-calculados.

A real é que minha mente sempre foi tão frenética quanto a de qualquer outra pessoa, a diferença é que em mim mente e corpo agem em frequências desiguais, e a mente costuma levar a melhor. Quando o corpo pensa em entrar em ação, a mente invoca seu lado repressor e, como uma tropa de choque em meio a uma manifestação de professores, arremessa uma bomba de efeito moral com as palavras “Aqui, não”.

Só depois de algum tempo descobri os males de se pensar demais e que o overthink é o grande mal do século (ao menos para os introvertidos). Ora, bolas, eu achava que tomar atitudes calculadas era a minha única qualidade e ela acabou se mostrando um monstro assassino me perseguindo em um casarão abandonado.

De fato, mentes que pensam demais ficam aprisionadas e se afundam em um mundo platônico, enquanto os impulsivos vão para cima intuitivamente e, na base do erro e acerto, costumam levar a melhor. Para os introspectivos todas as possibilidades estão em jogo, mas só o pior cenário interessa. Isso vale para a vida social, profissional, amorosa e o quê mais entrar na conta.

O overthink também é o amigo indesejado que faz o sono ser uma bosta. Dormir quando há centenas de coisas para resolver nessa sua vida miserável deveria ser um pecado, analisa o cérebro da vítima. Mesmo quando não há qualquer preocupação em vista, puf, a impiedosa mente planta a lembrança de sua própria mortalidade e de que um dia todas as pessoas que você ama morrerão e que não há escapatória exceto abraçar o destino. E quando se passa as noites em claro, em uma longa luta contra si mesmo, pode crer que os dias serão nebulosos.

Mas isso tudo pelo menos me ajudou a descobrir, de uma maneira cruel, que eu sofria transtorno de ansiedade. Era final de junho de 2008, estava na faculdade e tinha que entregar uma parte do TCC. Havia muita coisa atrasada e passei madrugadas escrevendo e apurando informações. Chegava em estado de post-mortem no trabalho e virava pelo menos duas canecas de café todo dia. Esse era meu ritual sagrado.

Na quarta-feira fatídica, indo para a faculdade depois do estágio, senti um leve mal-estar no metrô. Me apoiei em algum lugar na saída da estação Trianon-Masp até recuperar o fôlego e passar a taquicardia. Achei que era um revertério causado pela cafeína em excesso e que não era nada demais, então segui em frente. Cerca de uma hora depois, no meio da aula, tive uma outra crise. Fiquei suando frio, meu coração batia como se estivesse no meio de uma maratona e a ideia remota de que podia ser um ataque cardíaco só piorou as coisas. Um amigo me deu um auxílio e fomos até o ambulatório. O cara que me atendeu tirou a pressão e viu que o negócio estava em níveis infernais, do tipo 18 por 12 ou algo perto disso. Acabei pedindo para o meu pai vir me buscar e me levar para o hospital. Na porta do pronto-socorro tive uma outra crise, mas consegui ficar mais tranquilo. Uns dez minutos depois, me deram calmantes e me botaram em observação.

Foi um dia e tanto para o meu velho. Era a final da Copa do Brasil e o Corinthians estava jogando contra o Sport na Ilha do Retiro. Certamente, ele imaginava ver a partida em um lugar melhor do que na sala de espera de um pronto-socorro. A questão é que logo que me separei dele e fiquei em observação, os pernambucanos tinham feito o segundo gol e seriam os campeões caso segurassem o placar. Achei que seria tensão demais para ele: o time do coração prestes a perder o título e o filho tendo um ataque. Qualquer outro no lugar já estaria morto.

O médico me receitou um antidepressivo para controlar a pressão — Rivotril se não me engano. Tomei um no dia seguinte e tive uma das sensações mais estranhas da minha vida. Senti uma euforia sinistra, do tipo que daria gargalhadas incontroláveis apenas com a sensação de rasgar a pele do braço com um canivete. O pensamento inicial é de que estava perdendo poder sobre minha consciência, mas diferente do que acontece com outras drogas; era uma anestesia mental, como se estivesse sendo controlado por alguém de fora. Sentia como se minhas emoções naquele momento fossem todas falsas (e, de fato, era exatamente isso o que estava acontecendo). Estava em um estado de paranoia pior do que qualquer bad trip. Decidi que era melhor parar de tomar aquilo antes que as coisas piorassem.

Alguns dias depois, fui fazer uma consulta com uma homeopata e ela deu uma nova abordagem ao problema. Ao invés de tomar remédio tarja-preta, a saída seria cortar alimentos gordurosos, maneirar no álcool, começar a praticar exercício físico e dormir melhor. Para essa última parte, ela me receitou um remédio homepático que induz ao sono e que deu excelentes resultados. E, por último, buscar maneiras de aliviar o estresse e parar de me preocupar tanto.

O diagnóstico podia não ser o mais inovador do mundo, mas fazia sentido. Estava profundamente estressado com o TCC, tremendamente sedentário e com um estilo de vida próximo a de um escritor maldito.

O fato é que desde que comecei a estagiar meus dias pareciam ter sido talhados pelo demônio em pessoa: religiosamente às quintas ia depois da aula beber com o povo da faculdade, e às sextas ia beber com a galera da firma. E, ocasionalmente, saía para beber às quartas, quando tinha jogo do São Paulo na Libertadores. E quando não havia aulas de segunda e terça, ficava até mais tarde no bar ao lado do trabalho. Como consegui passar de ano até hoje não sei. Talvez tenha sido um milagre. Sei apenas que a bomba-relógio já tinha sido acionada e eu não tinha me dado conta. A crise de ansiedade de 2008 foi um sinal e eu realmente me esforcei para decifrá-lo.

A parte da alimentação foi mais fácil. Não tenho restrições alimentares e fui ensinado a comer de tudo. A questão ficava complexa no momento em que pisava na rua. As opções de comida ou eram baratas ou eram saudáveis. E precisava que fosse algo rápido. Lanche de peito de peru do Subway sem queijo no pão integral era a melhor opção que se encaixava nessa tríade maligna.

E quanto ao lance de beber menos, posso dizer que funcionou nas primeiras semanas.

Falta a questão da meditação. O lance é que sempre gostei da prática e viver numa família com uma forte influência budista certamente ajudou. Tantos meus avós maternos quanto paternos possuem altares budistas em casa e costumam fazer oferendas diariamente.

A questão é que nunca fui muito ligado à religião e tinha apenas uma vaga ideia de como a meditação funcionava. No fundo eu admirava, mas considerava distante da minha realidade. Só que quando precisei de um tranquilizante natural para a minha mente achei que valia a pena ir atrás.

No começo parti para algo próximo do mindfulness, que é o mais simples de todos. Não há muitas regras, exceto que você fique de olhos fechados, sem se mexer e preste atenção na respiração. Fazia isso deitado na cama antes de dormir e, em alguns minutos, conseguia cair no sono.

Lógico que os radicais dirão que isso não pode ser considerado meditação, e talvez eles estejam certos. Só passei a entender melhor como funciona o negócio depois que comecei a usar o aplicativo Pranayama no iPhone. Ele controla o tempo e a respiração de modo que ela fique uniforme e, assim, corpo e mente relaxam de verdade.

Era o tipo de paz interior que eu precisava. Pela primeira vez em muito tempo senti que a mente realmente estava descansando, livre dos pesos psicológicos que atrapalhavam meu dia. E, de uma maneira que ainda não conseguia explicar, tinha uma melhor compreensão daquilo que me atrapalhava. Essa é a magia do negócio e é por isso que ela funciona.

Há uma série de pesquisas por aí dizendo como a meditação pode mudar as estruturas neurais do cérebro. Há inclusive um estudo curioso que diz que a prática torna as pessoas mais alinhadas com as ideias de esquerda. Como já era esquerdista antes de começar a meditar, as mudanças para mim se deram na capacidade de dormir melhor e de saber lidar com momentos de pânico e nervosismo. Continuei introvertido, mas em situações sociais passei a apostar mais na intuição e menos no overthink.

Antes de me iniciar na meditação, sentia que a grande barreira que me afastava dela era o lance de esvaziar a mente. Isso talvez funcionasse para poucos sortudos, mas não para alguém com uma mente efervescente como a minha.

A verdade é que isso é uma patifaria sem sentido, um mito difundido entre os leigos. Não pensar não é algo que algum ser humano normal consiga fazer. O cérebro está em funcionamento constante, não há como escapar. O que a prática diz é que toda vez que algum pensamento surgir na mente (e ele vai surgir), o que se deve fazer é simplesmente deixá-lo ir embora, sem julgamento ou apreensão, e voltar o foco na respiração.

Meu modo de meditar atualmente é o seguinte: sento no tapete felpudo do quarto, coloco a bola de pilates entre minhas costas e a parede, cruzo as pernas, junto as mãos de modo que apenas os dedos se toquem (mais ou menos igual nessa imagem) e fecho os olhos. Fico no mínimo 20 minutos contando repetidamente de 1 até 10 a cada respiração (para ficar mais fácil de entender, ao inspirar conto 1, ao expirar: 2, depois ao inspirar: 3, ao expirar: 4, e assim por diante. Quando chego no dez, volto a contagem). Enquanto isso, a mente vagueia sentindo o que está acontecendo agora: o barulho do relógio, a temperatura ambiente e se as costas estão realmente retas. Para marcar o tempo uso um aplicativo para Android, o Zazen.

Em alguns minutos, entra-se no estado alfa. A oxigenação faz a mente flutuar e o corpo fica mais leve. Algumas vezes vejo imagens disformes, como num teste de Rorschach, surgindo como flashes.

Quando as coisas estão no caminho certo, toda a noção de tempo se perde. Milhares de pensamentos aleatórios já pintaram e já se foram e a contagem da respiração parece estar na casa do infinito. Quando horas parecem já ter se passado, de repente o alarme dispara tocando o som de um sino budista e é como se seu cérebro tomasse um leve choque. A mente está tão absorta em si mesmo, alerta a tudo que acontece internamente, que qualquer estímulo externo ecoa como uma onda se espatifando contra seu corpo. E se for assim é porque deu tudo certo.

De tempos em tempos, gosto de ir aumentando o tempo de meditação. Quando comecei a usar o Pranayama, fazia uns dez minutos no máximo. Atualmente, em dias mais tranquilos, fico 45 minutos meditando. Parece tempo demais para ficar parado sem fazer nada, mas não é. Há malucos que ficam mais de duas horas por dia meditando. Há malucos que ficam mais de cinco horas dentro de um tanque de privação sensorial totalmente isolados de som e luz e tendo insights de todo o tipo. E há malucos como eu, tentando chegar lá.

Em dias mais turbulentos, apelo pra uma meditação guiada do Meditation Oasis. Esse tipo de meditação é uma boa para quem está começando ou quando quero simplesmente desligar a mente e deixar alguém controlá-la por mim. Assino o podcast deles e baixei diversos guias para ouvir no celular, mas hoje essa não é mais a minha opção favorita.

Acho que era 2011 quando minha prima me levou a um encontro budista. Nessa época tinha dado um tempo com a meditação e achei que seria uma boa me reconectar à ela, nem que fosse de uma maneira forçada.

Os encontros eram feitos na casa de um membro do grupo. O dia em questão era específico para novas pessoas conhecerem as ideias e as práticas da religião.

Todos foram bem receptivos e o clima era de paz e harmonia até que logo no final um dos organizadores do evento começou a falar. E, no meu entender, falou merda. Ele disse como a religião é algo definido, que aquilo não é filosofia e que não há o que se questionar sobre a crença e coisas nesse sentido. Resumindo: ou você acredita na palavra ou você está fora. Parecia um óbvio discurso de alguém que provavelmente já seguia algum outro dogma e subiu em um novo barco levando todas as suas bagagens antigas. Talvez esse seja o único caminho possível para ele, qualquer outra possibilidade é o caos.

Aquilo me deixou furioso. Após uma vida inteira batendo de frente contra dogmas, de repente alguém joga um caminhão desgovernado de regras em minha direção. Não que o budismo não tenha lá suas crendices, e isso é legítimo, mas o nível do sermão me remetia à minha educação no colégio de freiras e esse é um cadáver que deveria continuar enterrado. Mas, por outro lado, esse choque me ajudou a entender que a religião seria um pano de fundo para a questão que realmente me atormentava naquele momento, que era o fato de eu não saber mais o que queria fazer da vida.

Por outro lado, uma das coisas que alguém falou naquele dia era que nunca alguém encontrará a felicidade enquanto sua mente ficar presa ao passado e ao futuro. O passado já passou e não há mais o que fazer, e o futuro é incerto e inevitável. Pensar e viver o presente é a única coisa que nos resta, e é nele em que devemos nos agarrar.

E para isso a religião é desnecessária. Em casos assim, a religião é como viajar em um pacote turístico e a meditação é cair na estrada de mochilão. O caminho é o mesmo, o que muda é o seu senso de liberdade. E na meditação existem muitas rotas para seguir, tudo depende daquilo que se encaixa melhor na sua vida.

Uma boa razão para eu ter caído de cabeça nessa história de meditação foi a descoberta de que ela poderia me fazer um escritor melhor. Era uma ideia o qual intuitivamente já tinha conhecimento, mas que ficou mais clara depois que li em algum lugar que o horário em que as pessoas são mais criativas é logo após acordar, quando o lado racional do cérebro ainda não despertou direito. A mente ainda está introspectiva e relaxada, fazendo conexões aleatórias sem sentido e sem filtros. Isso é muito parecido com o estado meditativo.

Na pós de Jornalismo Literário, tive algumas aulas pouco ortodoxas sobre a nobre função da escrita. Uma das técnicas que aprendi sustentava a ideia de que relaxar durante uns dez minutos antes de escrever deixava a mente mais criativa. Fechar os olhos, ouvir uma música tranquila e mentalizar o texto pronto é o equivalente a uma volta de aquecimento dos pneus para um escritor.

Outra técnica consistia na escrita rápida, que era escrever de maneira frenética e absurda, sem parar para pensar ou mesmo para corrigir algum erro de digitação que seja, apenas batendo no teclado sem qualquer controle sobre a lógica. Pela teoria, a técnica faz com que o lado esquerdo do cérebro, que seria o lado mais criativo, faça sua parte sem ser importunado pela faceta repressora da mente. Depois, o lado direito faria o trabalho sujo de editar e dar forma e sentido ao conteúdo. É como ter um redator indisciplinado e um editor-chefe ranzinza no mesmo corpo. Incrivelmente, o resultado costuma sair melhor do que o esperado.

Também reparei que a prática me ajuda a driblar momentos em que pinta o sinistro writer’s block, o vulgo Apagão. Lembro que vi uma entrevista com a jornalista Eliane Brum em que ela dizia resolver esse problema simplesmente deixando a mente espairecer, fazendo algum exercício físico ou apenas dando uma volta com o cachorro pela vizinhança, por exemplo. Ela tem a intuição de que em um momento de distração o cérebro vai dar uma resposta satisfatória para a questão que ela busca e ela poderá voltar a escrever. Esse é o ritual que funciona pra ela, e a meditação é a que tem funcionado para mim.

Desde o começo de 2015 tenho me dedicado à corrida. Posso dizer honradamente que meu grande mentor foi Haruki Murakami e seu livro Do Que Eu Falo Quando Falo de Corrida. Sempre tive vontade de completar uma 5K, mas faltava disciplina, força de vontade e alguém que me explicasse como deixar de ser sedentário e sair por aí correndo sem perder o fôlego após cinco minutos. Já tinha tentado e fracassado algumas vezes, e o livro de alguma forma me ajudou a encontrar algumas respostas.

Mas em certos momentos tinha a estranha sensação de que o maldito parecia estar falando de meditação. É difícil explicar o porquê, qualquer palavra que eu usasse não faria o menor sentido nesse caso. O fato é que sua definição de como é completar uma maratona me enchiam com um déjà vu misterioso.

O fato é que não custava tentar. Um dos desafios de ser um corredor é saber sincronizar a respiração com o movimento do corpo. Nada pior do que ficar sem ar quando as pernas ainda aguentam algumas voltas pelo parque ou flertar com a cãibra quando os pulmões funcionam na frequência de um passeio pelo shopping. Por isso, a respiração é o órgão regulador da corrida. A cada passada fico contando de um a dez alternadamente, igual na meditação. É uma prática que ajuda a me manter focado e que hoje já se tornou instintivo. Quando me vejo correndo sem contar é como se algo estivesse deslocado da realidade.

E não era minha vontade vir aqui forçar a barra e dizer que há similaridades entre correr por longas distâncias e fazer meditação, mas é exatamente isso o que vai acontecer. Porque igual a correr, meditar não é um lance que você simplesmente vai lá e faz: é preciso se preparar e ir aos poucos ultrapassando seus próprios limites físicos e mentais. Ninguém simplesmente fica 30 minutos meditando ou correndo logo na primeira tentativa — e não porque isso seja impossível de ser feito, mas é porque a experiência será tão dolorosa e angustiante que dela não sairia nada além de traumas, amargor e pernas dormentes.

E é isso o que eu tenho a dizer sobre meditação. Se quiser se aprofundar no assunto, recomendo dar uma olhada no Reddit. Os iniciantes são sempre bem recebidos e as discussões costumam ser interessantes.

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