Mais um

Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS
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6 min readMay 30, 2018

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Ou: Ser mãe de Mineirinhos do mundo

“Há alguma coisa em nós que desorganiza tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante de S. Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim?” (Mineirinho*, Clarice Lispector)

Corpo franzino. Pele seca, calcanhar machucado. Os dedos do pé têm a unha por cortar. Ali, a imagem do que parece ser o passado do mundo, mas tão presente. As mãos sujas de sangue tentaram agarrar alguma coisa: talvez a vida, que saiu voando pelos buracos em seu peito.

Os olhos ainda abertos.

Olhos famintos de encarar a Terra. Olhos em busca de sonhos invisíveis. Corpo franzino e negro. Não chegou aos dezoito anos e nunca mais fará dezoito anos, será para sempre menor: menor nas ruas da grande cidade, menor na vida e na morte. Para sempre mirrado, com história atravessada e morta assim como a pele, os músculos, o sangue. História acabada e, então:

Um menino no meio da calçada, um menino morto.

Ela tomava a terceira xícara de café quando a madrugada soou a presença de um corpo, a necessidade de um profissional, alguém para testemunhar, analisar, entregar o que era preciso e, pronto, assunto encerrado. Chegou ao local, parou o carro, mal caminhou e logo encontrou os olhos negros encarando o nada.

– E aí, Clarice, o que temos?

Ouvir seu nome é como despertar de um pesadelo que se repete continuadamente — nessa rotina de analisar o que quase ninguém quer ver. Há tantos minutos está aqui, mirando o corpo estendido no chão, a paralisia da morte interrompida apenas pelos barulhos ao redor: sirenes, motos, uma ou outra pessoa que passa — não se lembrando de que também é passageiro. São, somos. Passageiros, todos. Todos alimentando-se da ilusão de eternidade diante da fragilidade de um menor caído no chão.

Quase duas décadas que encara a morte, o que significa que faz isso há mais tempo do que esse garoto pode respirar. Embora não se acostume, há sempre essa sensação ácida percorrendo suas veias, saindo pela pele, o grito-mudo diário pela desorganização de si, de ser humana e não poder contar com a esperança (que tanto engana) — pois como acreditar numa espécie que inventa desculpas para se matar? Como viver na espera de algo luminoso se é ela quem sai recolhendo corpos nas ruas como quem colhe conchinhas à beira mar?

Está muda e séria, um pouco mais morta do que horas antes, já que mais uma vez está com essas luvas, supostamente sentindo a falsa assepsia da realidade. Mas a vontade é de sair gritando: que nunca estaremos protegidos do sangue de meninos mortos no centro da cidade.

Ninguém ouviria. Ninguém ouve, estão todos presos em bolhas de sobrevivência. Ou de confortável conformismo, modo privilegiado de ser cego a corpos frios dos outros.

Enquanto isso, a desorganização em seu sangue, fluindo ácido, quente-frio.

– Clarice?

– Menor de idade. Treze tiros: cinco no peito, um no pescoço, três no abdômen…

Tiros certeiros. A boca diz automaticamente, e as borbulhas de dor, os olhos presos nos olhos abertos.

Mas: por que tantos? Não bastaria um?

Já deveria ter se acostumado: é o que os amigos dizem, impressionados com a falta de capacidade de não se importar. De não se envolver, corrigem-se, pois é claro que a morte assombra qualquer ser humano, não é assim? É?

Ou é apenas a morte próxima, a morte que nos toca os olhos aquela que realmente importa? A morte é número até tomar o rosto de quem amamos? Ou ainda há quem olhe para ela e veja toda a humanidade?

“Não dá para escolher fazer algo assim sendo tão sensível, Clarice. Endureça-se ou desista”, seu pai repetia sempre, em ladainha de cuidado. Sim, a insensibilidade seria solução para o trabalho que escolhera, para a realidade em que vive, para a cidade em que mora, para o mundo que atira e mata corpos de meninos. Mas há esse algo que a desorganiza, o coração que dança movimentos de universo: contrai-se para explodir.

É por isso que se fantasia de estátua branca. É por isso que fica escondida atrás dos olhos atentos. Ela, Clarice, a grande testemunha da morte alheia, da total indiferença que há em torno do desaparecimento de mais um nessa terra. A morte de mais um, nesse mesmo lugar, nessas ruas da cidade, onde prédios observam a morte diária sobre todas as cabeças, edifícios-espectadores de vida-morte, gigantes de cimento, mil janelas indiscretas.

– Vou ali na rua de trás. Parece que encontraram um ferido.

Por que está aqui hoje, afinal? Se não se acostuma, nem desiste… e mal pode se lembrar de como escolheu trabalhar com isso, recordando-se apenas dos olhos assustados da mãe: “por que mexer com morte, menina? Tanta coisa bonita para fazer no mundo, tanta coisa mais limpa, mais fácil?”

Tanta coisa mais viva.

Mas, se não ela, quem? Alguém que não se importa? Não, que seja ela a enumerar corpos sem vida, Pietá contemporânea de filhos alheios. A morte do outro que a transforma em estátua branca, repetição de dor sistemática: ainda que silenciosa, ainda que despercebida, ainda que as luvas e as roupas e a rotina insistam em protegê-la, a dor borbulha em seu estômago, transpira-se. Assim é, então, Clarice, a mulher que olha para os olhos da morte. Da morte que sai recolhendo vidas pelo centro da grande cidade, alimentando-se de matéria sem alma, de carne fria.

Não há muito mais que possa notar e anotar. A caneta rabisca apenas o óbvio, dados burocráticos, relatórios que serão empilhados assim como os corpos são empilhados pela rotina violenta.

O que escreve não dá a dimensão da vida. Não há subjetividades, não há espaço para que descreva tudo aquilo que torna essa morte a única do mundo — e todas ao mesmo tempo. Oficialmente, mais um morreu: número um, um mil, milhares todos os anos. Apenas isso e ninguém saberá que a quase dois metros do corpo descansa um chinelo de borracha desgastado, em que é possível ver a marca dos dedos dos pés — que, antes, vivos, caminharam para a própria morte.

Ninguém saberá que, na madrugada de terça-feira, um chinelo se separou dos pés do garoto franzino, objeto e sujeito: ambos perdidos na tentativa frustrada de fuga. Fuga contra o destino manipulado por mãos sujas de dinheiro e sangue, mãos que condenam meninos de chinelos à sobrevida e à morte desde que saem dos corpos de suas mães até que estejam nas calçadas. Menores.

Vida escorregadia que cresceu e correu de chinelos nas ruas da cidade, vida que se rarefez em cada apertão no gatilho — e antes: pois já morreu no desejo de matar o menino; e mais do que o menino, a ideia do menino, desse “um menino”.

Uma cartomante qualquer, se pudesse, avisaria: que logo ali na esquina, oh sim, a morte estaria o aguardando, e que ela podia ver que teria um de seus pés descalço, e que a vida escorregaria em seus dedos. Mas que ficasse tranquilo, que não temesse, porque ele entendia tanto da solidão, então, estaria tão sozinho quanto na hora em que nasceu. Depois, viria uma mulher cobrir seu corpo.

Ninguém saberá e nem verá esses olhos negros e essa morte amuada na madrugada fria de julho. Ninguém saberá que o menino morreu de bruços com as mãos a buscarem algo que nunca será revelado.

Talvez, saibam que houve treze tiros.

Mas não se achem assassinos. A humanidade assassina. Ali está ela: cobrindo o corpo, no gesto costumeiro, sentido a desorganização dentro de si, uma dor atravessando seu peito, a avenida, os prédios, o céu, a cidade. Por que tantos: meninos, tiros?

– Clarice, estão te chamando. O ferido morreu, mais um.

*O conto Mineirinho está em “Fundo de Gaveta”, coletânea de contos de Clarice Lispector, originalmente disposta no livro “A Legião Estrangeira” (1964).

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CRÔNICAS

Crônicas, contos, resenhas e rabiscos. Por Ana Lis Soares.