Domingo de Futebol

Luigi Madormo
CRÔNICAS
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7 min readMay 24, 2018
Foto: futeboldecampo.net

A mancha de molho de tomate na camiseta de Paulo não deixava esconder o nervosismo do pai de primeira viagem. Todos os domingos era dia de macarronada na casa dos Rocatti e quem não repetisse o prato da Nona não tinha permissão para levantar da mesa. A estratégia era infalível: almoço bem servido a uma da tarde, seguido das apostas do bolão da família, e as duas e meia saia a excursão dos primos sentido a Perdizes. Nesse domingo, a família se dividiu em dois carros. Pela primeira vez, Paulo levava sua filha Sophia para assistir ao jogo do Palmeiras.

Por ele, a menina teria conhecido o antigo Palestra Itália antes do estádio virar Arena, mas a mãe da garota não achou prudente a recém-nascida ficar no meio de toda aquela barulheira. Os argumentos para que ele não a levasse a um jogo foram implacáveis por alguns anos, até que a irracionalidade que fez Paulo parecer membro da turma do amendoim venceram a esposa pelo cansaço.

As vozes tremidas da rádio AM eram o plano de fundo das histórias que o pai vibrante contava. Em 30 minutos de trajeto, a menina ouviu sobre as milhares de bandeiras que tremulavam na arquibancada no primeiro jogo da vida de seu pai, aprendeu a cantar o grito que infernizou a vida de Viola após a final do Paulista de 93, ficou com vontade de provar o picolé que o jovem Paulo comprava nas arquibancadas de cimento do Parque Antártica, e foi transportada a toda e qualquer lembrança que pulasse da mente daquele Palmeirense fanático.

Seus olhos brilhosos ao ver as camisetas verdes e brancas tomarem conta da av. Pompéia quase fizeram Paulo derramar as primeiras lágrimas do dia antes mesmo de descer do carro. A excitação de ambos era tanta, que Paulo não se incomodou de pagar os 40 reais pedidos pelo flanelinha.

Os primos se encontraram na entrada da Rua Palestra Italia, que por algum motivo eles teimam em chamar de Turiassu. Talvez seja a esperança de que assim ela encarne os velhos tempos e deixe de ficar restrita apenas para quem carrega o seu cartão de Sócio-torcedor nos dias de jogo. A espera para passar pelo primeiro bloqueio policial foi amenizada por uma ideia da tia Paty. Um potinho de tinta verde e branca, e agora a pequena Sophia tinha o rosto dividido entre as duas cores. Do alto dos ombros de seu pai, a garota de cara pintada viu uma rua semi-tomada. Pelos torcedores com seus batuques e cânticos, e pelos policias com seus cavalos e furgões que mais parecem tanques de guerra.

Na fila para entrar no estádio, a primeira vez que a menina ouviu o grito de “Palmeiras fiu fiu fiu” em um loop que ela não entendia direito porque nunca acabava, mas que de algum jeito fez um sorriso ganhar seu rosto. A empolgação logo virou chateação quando o policial obrigou que ela tirasse aquela tinta da cara para que pudesse pisar na Arena. Ele não soube explicar direito o porque, mas aparentemente ela estava infringindo alguma lei. Apesar das lágrimas da menina já borrarem o verde e branco da sua pele, Paulo precisou pedir da água de outros palmeirenses que passavam pela revista para limpar o rosto da menina.

As mesmas palavras que faltaram para o policial não vieram para o pai perdido em meio àquela situação, que tentou consolar a pequena trocando 10 reais por um sorvete que leva o mesmo nome do estádio. A menina não sabia o que era Vanilla, mas aos poucos as lágrimas foram parando, e ela finalmente chegou ao seu assento. Era tudo grandioso, tudo bonito. Pouco menos de 10 minutos para o jogo, e o outro lado do estádio começava a se agitar. Em pouco tempo, os gritos atravessaram a arquibancada, e agora todos ao seu redor cantavam a plenos pulmões. A menina tinha motivos para sorrir novamente.

O apito inicial do juíz passou em branco em meio a toda aquela gente em pé. Ela nem sequer reparou um Palmeiras avassalador nos primeiros 5 minutos de partida, que só diminuiu o ritmo depois de fazer o goleiro do Botafogo buscar a bola dentro do gol. Apenas alguns minutos que a garota estava no Allianz Parque e o Palmeiras já abria o placar… foi uma festa só. Passou pelo colo de todos os tios em sequência até pousar nos ombros de seu pai novamente. Obviamente ela virou o amuleto daqueles Rocatti em êxtase. Cantou as letras das músicas mesmo sem saber, o que não era problema porque boa parte das pessoas ao seu redor também não sabiam.

O ímpeto do alviverde diminuiu e passado o fervor pós gol, o jogo ficou monótono. Os Rocatti antes inflamados agora estavam sentados, pois segundo um torcedor que estava atrás deles, os 100 reais investidos no ingresso davam o direito de assistir ao jogo sem levantar de sua cadeira. Quem quisesse ficar em pé que fosse para o meio da Mancha.

A pequena palestrina aproveitou o marasmo que se estabeleceu ao seu redor para observar as pessoas. Entre um olhar para o campo e outro para a torcida, Sophia conheceu mais um ritual que parecia ser parte da cartilha de bons costumes do torcedor: se virar de costas para o gramado, levantar o celular e tirar uma selfie, mesmo com o jogo acontecendo.

Não demorou muito até que uma torcedora perguntasse a Paulo se podia tirar foto com aquela mocinha tão linda do rosto ainda um pouco borrado. Aquele pedido quase fez Paulo explodir em xingamentos diante de um Botafogo que se aproximava da área do Palmeiras, mas a vontade de ser um bom exemplo para a filha ainda conteve o sujeito que já havia xingado o lateral esquerdo palestrino de pelo menos 7 nomes diferentes.

Paulo e seus primos ainda tentavam seguir a voz da torcida organizada do outro lado do estádio, mas poucos eram aqueles que os acompanhavam no incentivo. Os momentos que a torcida mais ficava barulhenta eram nos tiros de meta do goleiro adversário, quando o torcedor que pediu para que os outros se sentassem se juntava a uma massa para gritar um sonoro “Bicha”. Nesse momento, Sophia era uma das mais maduras do setor.

O fim do primeiro tempo ainda contou com algumas vaias de torcedores que não estavam contentes com um jogo que deixou de estar nas mãos do Palmeiras. Como o time mais caro do Brasil poderia passar sufoco jogando ao lado dos seus Sócio-torcedores? Mas bastou a câmera do beijo aparecer no telão para os sorrisos voltarem a dar o ar da graça. Sophia era uma das poucas que não parecia ligar muito para o show do intervalo patrocinado pela marca de bombom. O colo da tia Paty era convidativo e uma soneca soava mais interessante do que aquilo.

O Alviverde estava de volta ao gramado. O sono da garota incomodou Paulo, e um chacoalhão fez a garota acordar como se estivesse indo para o primeiro dia do volta às aulas. As tentativas de empolgar a menina seguiram. Ele apontava para o borrão branco do setor norte que concentra a pequena parcela agitada do estádio. Lá era onde estariam as bandeiras, e os batuques, e as fumaças que o fizeram gastar boa parte de sua adolescência em um campo de futebol. Nada disso existia mais. Talvez o chefe do policial que pediu para a garotinha limpar seu rosto soubesse explicar o porque… Mas tudo bem, ainda existe voz, e Paulo se encarregou do “fiu fiu fiu” enquanto a pequena gritava Palmeiras.

O time alvinegro voltou ligado e não demorou a empatar o jogo. Os cânticos ficaram cada vez mais fracos, as reclamações cada vez mais fortes. Alguns optaram pelas vaias, outros pelo WhatsApp. Sophia não sabia o que a cartilha do torcedor mandava nesse tipo de situação, então optou por seguir a moça que havia tirado a foto com ela no primeiro tempo e começou a brincar com o celular de tia Paty.

A bola não saia do campo de defesa do Palmeiras. As 3 substituições foram feitas mas nada parecia mudar a apatia que extrapolava o campo e chegava na maior parte do estádio. Tudo parecia caminhar para um final morno e sem graça, até que o sistema de som se juntou ao telão de LED para um dos grandes momentos da tarde: a torcida Alviverde aplaudiu com paixão o anúncio de público e renda. Sophia entendeu que deveria fazer o mesmo, e sorriu para o seu pai esperando sua aprovação. O desolado Paulo apenas pegou a garota no colo e segurou suas mãos. Os Rocatti ainda ganharam os seus 5 segundos de fama aparecendo no mesmo telão aos 44 do segundo tempo com um empate a beira de se tornar uma derrota.

O apito final foi ouvido em todas extremidades da arena. O Palmeiras se safou de levar a virada em casa, e a pequena Sophia não saiu carregada como o novo amuleto da família. Mas para Paulo, o empate não havia sido decepção. Levar a sua filha pela primeira vez no estádio era a realização de um sonho. Aquela experiência com certeza havia marcado a vida da menina assim como o Palmeiras x Inter de Limeira marcou a sua. A expectativa por saber qual foi o momento do dia que Sophia mais gostou não deixou de ter uma resposta impactante: as histórias de como eram os jogos antigamente.

Por Luigi Madormo, 10/05/2018

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