Ela é linda

(E também a mais encantadora e folgada que conheci)

Esboço de Bolso
CRÔNICAS
4 min readAug 21, 2017

--

Eu já havia andado um tanto e resolvi parar pela Lapa do jeito mais relaxado e descompromissado possível para um descanso.
Pra isso serve o quintal de casa, né?
Comprei uma longneck e sentei no topo da Selaron, onde eu conseguia ver a turistada tirando fotos lá em baixo, pois sabia que só os realmente interessados subiriam e então eu teria maior sossego.

Sentei de canto no primeiro degrau antes da bandeira e coloquei a mochila no chão, ao meu lado, e saquei dela: caderno, lapiseira e Drummond, que acompanhados de fone de ouvidos me renderiam algumas horas de tranquilidade naquela tarde de sábado.

Li aproximadamente uns 30 minutos antes de começar a escrever algo e então repousei o livro ao meu lado pra ver se rolava uma inspiração apenas pela presença do poeta por perto.
Havia notado, minutos antes, passos em minha direção e dividia a atenção entre escrever e dar uma olhadela descompromissada ao pé da escada.

Aos poucos os passos foram se aproximando, subindo lentamente degrau a degrau, eu ainda não sabia se por cansaço ou por carregar em si a displicência gostosa do andar sem compromisso, no entanto era certo de que vinha em minha direção e chegaria em breve.

Já perto de mim foi inevitável que a gente se encarasse.

No momento seguinte aqueles olhos cor de mel me olharam profundamente e se acomodaram em minhas pupilas, ate encontrarem a posição perfeita e…deitaram!
Sim, Drummond aquela altura não era nada mais do que um travesseiro!

Era o cão mais encantador e folgado que eu havia conhecido.

Encantador porque se acomodou ao meu lado de um jeito meigo como se fossemos amigos de longa data.
Folgado porque colocou as patas sobre o Drummond e deitou por cima. (talvez goste de poesia e isso é bom sinal)

Passei a chama-lo de Andrade!

Nas horas seguintes escrevi e carinhei o vira-latas com pelo dourado, orelhas semi pontudas, algumas marcas perto do pescoço (parece que temos um brigão), patas dianteiras claras como mancha de água sanitária e jeitão de neo-malandragem carioca.
Lia em voz alta alguns dos trechos que havia escrito e um singelo balé de sobrancelhas me servia como indicador do meu desempenho.
Não falava muito, mas o rabo ficou bem ouriçado quando umas gringas passaram e lhe fizeram festa na cabeça e dorso.

As crianças se aproximavam e fugiam, sempre que ele se mexia.
As mulheres achavam graça e sorriam.
Os casais perguntavam o nome e franziam e testa ao ouvi-lo.
Os homens simplesmente não se importavam conosco.

Não tenho ideia de quanto tempo fiquei ali até decidir ir pra casa, mas demorou aproximadamente 5 ou 6 longnecks bem apreciadas e uma mão quase preta de tanto friccionar contra aquele pelo caramelo.

Agradeci a companhia, guardei minhas coisas, fiz um último carinho e comecei a descer a escadaria em direção a minha casa.
Reparei que me acompanhava, mas pensei que devia fazer isso sempre que lhe davam atenção e que depois desistiria. Porém bastava reparar as pessoas vindo em minha direção para saber que Andrade ainda me seguia.

Sentei no meio fio e expliquei que tinha curtido o momento na escadaria, que não fiquei bravo por reprovar o que escrevi e que não saberia cuidar de um cachorro.

Uma menina que passava falou:
- Se toda mulher ganhasse essa atenção o mundo tava salvo! Que carinha de anjo, qual o nome dela?
Pensei numa velocidade incrível e respondi:
- Angel!

Pois é…Andrade era uma menina e eu sequer havia notado!

Angel e eu fomos até a Lavradio, comemos churrasquinho, ouvimos samba, latimos para 2 gatos, compramos bala para ajudar o cadeirante e descobri que alguém morre de medo de bolas estourando.

Me seguia feliz enquanto eu andava pela feirinha e via as bugingangas expostas, mas volta e meia me olhava com aquela cara de quem sabe que a diversão não tardaria a acabar.

Eu dava mais uma cafunezada e falava:
- Ei…eu tô sempre pela Lapa! Relaxa que a gente ainda vai se esbarrar muito pela escadaria! (sim, eu estava mentindo)
As vezes a gente solta uma mentira dessas sem pensar ou simplesmente com medo de encarar a verdade.

Acabou escurecendo e embora eu não quisesse ir para casa, ficar na rua até mais tarde não era uma opção.
Demorei uns 40 minutos para achar um Uber aquela noite!

Sabia que 99% deles simplesmente não aceitam carregar cães?

Hoje Angel tem casa, comida, cafunés e nas horas vagas foge dos banhos, corre atrás de gatos e mastiga chinelos.
E curiosamente continua deitando a cabeça sobre os meus livros de poesia que ficam pelo chão.

A cadela mais encantadora e folgada que eu conheci!

trechos de Claro Enigma do Drummond

Curtiu? Da um clap e aproveita pra ler esse aqui também ;) http://bit.ly/camascavalosincoerencias

--

--

CRÔNICAS
CRÔNICAS

Published in CRÔNICAS

Crônicas para instigar. Contos para envolver. Ficção para entreter.

Esboço de Bolso
Esboço de Bolso

Written by Esboço de Bolso

Recortes imprecisos de coisas que eu talvez tenha vivido. Falo sobre Música aqui http://bit.ly/naescuta