Ela é linda
(E também a mais encantadora e folgada que conheci)
Eu já havia andado um tanto e resolvi parar pela Lapa do jeito mais relaxado e descompromissado possível para um descanso.
Pra isso serve o quintal de casa, né?
Comprei uma longneck e sentei no topo da Selaron, onde eu conseguia ver a turistada tirando fotos lá em baixo, pois sabia que só os realmente interessados subiriam e então eu teria maior sossego.
Sentei de canto no primeiro degrau antes da bandeira e coloquei a mochila no chão, ao meu lado, e saquei dela: caderno, lapiseira e Drummond, que acompanhados de fone de ouvidos me renderiam algumas horas de tranquilidade naquela tarde de sábado.
Li aproximadamente uns 30 minutos antes de começar a escrever algo e então repousei o livro ao meu lado pra ver se rolava uma inspiração apenas pela presença do poeta por perto.
Havia notado, minutos antes, passos em minha direção e dividia a atenção entre escrever e dar uma olhadela descompromissada ao pé da escada.
Aos poucos os passos foram se aproximando, subindo lentamente degrau a degrau, eu ainda não sabia se por cansaço ou por carregar em si a displicência gostosa do andar sem compromisso, no entanto era certo de que vinha em minha direção e chegaria em breve.
Já perto de mim foi inevitável que a gente se encarasse.
No momento seguinte aqueles olhos cor de mel me olharam profundamente e se acomodaram em minhas pupilas, ate encontrarem a posição perfeita e…deitaram!
Sim, Drummond aquela altura não era nada mais do que um travesseiro!
Era o cão mais encantador e folgado que eu havia conhecido.
Encantador porque se acomodou ao meu lado de um jeito meigo como se fossemos amigos de longa data.
Folgado porque colocou as patas sobre o Drummond e deitou por cima. (talvez goste de poesia e isso é bom sinal)
Passei a chama-lo de Andrade!
Nas horas seguintes escrevi e carinhei o vira-latas com pelo dourado, orelhas semi pontudas, algumas marcas perto do pescoço (parece que temos um brigão), patas dianteiras claras como mancha de água sanitária e jeitão de neo-malandragem carioca.
Lia em voz alta alguns dos trechos que havia escrito e um singelo balé de sobrancelhas me servia como indicador do meu desempenho.
Não falava muito, mas o rabo ficou bem ouriçado quando umas gringas passaram e lhe fizeram festa na cabeça e dorso.
As crianças se aproximavam e fugiam, sempre que ele se mexia.
As mulheres achavam graça e sorriam.
Os casais perguntavam o nome e franziam e testa ao ouvi-lo.
Os homens simplesmente não se importavam conosco.
Não tenho ideia de quanto tempo fiquei ali até decidir ir pra casa, mas demorou aproximadamente 5 ou 6 longnecks bem apreciadas e uma mão quase preta de tanto friccionar contra aquele pelo caramelo.
Agradeci a companhia, guardei minhas coisas, fiz um último carinho e comecei a descer a escadaria em direção a minha casa.
Reparei que me acompanhava, mas pensei que devia fazer isso sempre que lhe davam atenção e que depois desistiria. Porém bastava reparar as pessoas vindo em minha direção para saber que Andrade ainda me seguia.
Sentei no meio fio e expliquei que tinha curtido o momento na escadaria, que não fiquei bravo por reprovar o que escrevi e que não saberia cuidar de um cachorro.
Uma menina que passava falou:
- Se toda mulher ganhasse essa atenção o mundo tava salvo! Que carinha de anjo, qual o nome dela?
Pensei numa velocidade incrível e respondi:
- Angel!
Pois é…Andrade era uma menina e eu sequer havia notado!
Angel e eu fomos até a Lavradio, comemos churrasquinho, ouvimos samba, latimos para 2 gatos, compramos bala para ajudar o cadeirante e descobri que alguém morre de medo de bolas estourando.
Me seguia feliz enquanto eu andava pela feirinha e via as bugingangas expostas, mas volta e meia me olhava com aquela cara de quem sabe que a diversão não tardaria a acabar.
Eu dava mais uma cafunezada e falava:
- Ei…eu tô sempre pela Lapa! Relaxa que a gente ainda vai se esbarrar muito pela escadaria! (sim, eu estava mentindo)
As vezes a gente solta uma mentira dessas sem pensar ou simplesmente com medo de encarar a verdade.
Acabou escurecendo e embora eu não quisesse ir para casa, ficar na rua até mais tarde não era uma opção.
Demorei uns 40 minutos para achar um Uber aquela noite!
Sabia que 99% deles simplesmente não aceitam carregar cães?
Hoje Angel tem casa, comida, cafunés e nas horas vagas foge dos banhos, corre atrás de gatos e mastiga chinelos.
E curiosamente continua deitando a cabeça sobre os meus livros de poesia que ficam pelo chão.
A cadela mais encantadora e folgada que eu conheci!
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