© Irina Gache

Entre nós

Melíflua
CRÔNICAS
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3 min readMay 1, 2016

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Sempre ando por aí com as mãos no bolso, olhando para o chão, com fones no ouvido e o cigarro na boca. Não olho para as pessoas ou para os prédios, sei meu caminho de cor. Minha única preocupação é não tropeçar.

Dia desses, eu estava com uma calça que adoro, com os bolsos fundos. Os bolsos são muito mais práticos do que as bolsas, eu simplesmente odiava ter que esvaziar a bolsa toda vez que procurasse a carteira. Justamente ao puxar a carteira do bolso da minha calça, ela trouxe consigo um emaranhado de linhas de cor roxa, bem intensa. Uma bolinha do tamanho de uma azeitona, parecia mesmo uma azeitona preta. Nunca vira uma tão grande. É o tipo de coisa que você descarta automaticamente, mas aquela era grande demais, grande o suficiente para não ser considerada lixo-que-deve-ser-jogado-no-lixo. Não sabia o que fazer, não queria guardá-la novamente no bolso, mas temi que ela se desfizesse. Era uma relíquia, deveria existir há tanto tempo.

Apeguei-me a ela, era bonitinha, mas também resistente, uma sobrevivente. Gosto dessa cor, dessa textura, ela provavelmente vivera tranquilamente dentro daquele buraco fundo e escuro… De repente, é como se eu tivesse arrancado de mim um feto em formação. O desespero tomou conta de mim. Eu não imaginava que uma vida pulsava ali dentro. Senti pena. Talvez ela nem quisesse ter saído de lá. Digo isso porque eu mesma não quis sair do ventre, precisei ser arrancada. Compreendi, então, sua dor. Acolhi-a dentro da mão fechada para protegê-la deste mundo injusto.

Não sei quanto tempo se passou, mas confesso que fui relapsa com minha cria. Ao chegar em meu quarto, gentilmente pousei a pequenina numa prateleira ao lado de outros tesouros mal explicados que encontrara em minhas andanças. Afinal, ela era só mais uma coisa descartável que indiferentemente ainda tinha lugar na minha casa, embora não houvesse mais algum vínculo entre nós.

Às vezes, de repente, você tira do bolso um emaranhado esquisito de linhas do teu passado, que estava lá, escondido, bem no fundo, que tua mão nem alcançava.

E você não sabe se deve descartá-lo, guardá-lo na estante ou devolvê-lo ainda mais fundo no bolso para nunca mais achá-lo. Você só consegue olhar demoradamente para ele e perguntar a si mesmo como tudo isso aconteceu, por mais que você se lembre, sim, o motivo dele estar ali. O problema é que a mera lembrança parece tão estúpida. Você parece tão estúpido. É melhor fingirmos que não sabemos. É, é melhor.

Há alguns anos, talvez, eu tomaria qualquer uma dessas decisões sem pestanejar. Empurraria o nó para ainda mais fundo lá dentro do bolso se houvesse a esperança dele se desenroscar sozinho. Ou daria um peteleco pra que ele saísse voando mundo afora, para que eu conseguisse apagá-lo da memória sem remorsos.

Mas hoje, hoje, eu estou aqui, pacientemente, desenrolando-o.

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