Entre princesas&cowboys

Crônicas de viagem: Austin, Texas

Cristina Hélcias
CRÔNICAS
4 min readNov 7, 2017

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Circuito das Américas, GP de moto velocidade. A corrida foi a desculpa para o final de semana que há tanto queríamos passar na capital do Texas, cidade de festas e estudantes. O cedo do evento nos acordou após uma noite na 6th Street, lugar povoado por gente animada e barulhenta, gritando alegrias genuínas ou as encontradas depois de alguns copos.

Acontece que este foi o final da estada. Voltemos no tempo. Em Austin é possível voltar. A cidade é úmida e regada a música. Tem a tranquilidade quente do sudoeste americano, vez ou outra pertubada pela eletricidade em raio de suas startup and tech companies. Assim sendo, é pacata e cheia de energia; arrepia e acalma. Talvez, por isso, em Austin o tempo pare e por ele nos permita passar. Regressemos.

Antes da 6th Street, houve um começo de noite. De mãos dadas e no ritmo da cidade, fomos nós explorá-la, plantados na Congress Bridge ao pôr do sol, enquanto aguardávamos com uma pequena multidão, a tão anunciada debandada dos morcegos. Eles moram embaixo da ponte e partem todos os dias, quando o sol se apaga. Naquela noite, porém, me parece que saíram pelos fundos. Não deram as caras, decepcionando os expectadores do alto e nossos pares no rio, montados em barcos estrategicamente ancorados, à espera dos bichos. Fiquei especialmente com dó de um casal. Ela de vestido vermelho, ele bem penteado, remando um barquinho. Carregavam a garrafa de algum borbulhante, taças apostas para o brinde. Quem sabe, esperava a revoada dos morcegos para pedi-la em casamento. Escolha estranha, pensei. Seja como for, um bat menino fantasiado, descendo rampa abaixo em seu bat skate, foi a visão mais próximo que tive do bicho.

Embalados pelo som da percussão improvisada na entrada da ponte, voltemos agora ao final da tarde, quando sentamos no Docks bar, plantado em alguma esquina da South Congress Ave, e tomamos cerveja em um terraço colorido, decorado por cordões com luzes ainda apagadas. Fazia calor e o sol nos mimava. Sem casacos, comentávamos os grafites da Hope Outdoor Gallery, galeria a céu aberto, cravada no que um dia seria um prédio. Paramos por um instante, brincando de descobrir formas no emaranhado de pinturas. Cubrindo-nos do sol, a sombra de uma grande árvore anciã, uma das tantas vistas pela cidade, e o vento que balançava os seus galhos, tocando as guitarras coloridas neles penduradas. Em Austin, toca-se a música do vento e as árvores majestosas cantam melodias contemplativas de quem esqueceu de contar o tempo. Por isso, talvez, ele se abra e nos permita voltar.

Antes ainda, teve a nossa aventura pelas ruas do SoCo District. Entre as suas lojas vintage e mercadinhos de orgânicos, um pouco de tudo é encontrado: de livros antigos a fotos de gente que não existe mais; passando pelas fantasias mais inusitadas até, finalmente, encontrar os prometidos chapéus e botas de cowboys, a preços preciosos, afinal, no Texas, chapéu é coisa séria; e lojinhas de modas recicladas, que ele aprendeu a me acompanhar, em meu garimpo por possíveis tesouros.

De mãos sempre dadas, é por la que seguimos, enquanto sorrimos nossa cumplicidade de motos e modas, talvez compartilhada e compreendida por aquele cowboy sentado com as pernas cruzadas em algum banco de calçada. Com a sua viola, embalava os sonhos de uma pequena princesa loira. Eu toco e você sonha, a trilha sonora da vida que ainda vai começar. Uma melodia arrastada e molhada, grudando no cabelo dourado da menina cúmplice.

Entre princesas e cowboys, era o feitiço do nosso café da manha recém- tomado, continuado na cena inesperada da calçada. Ainda sonolentos, sentados à mesa de algum Starbucks, em downtown, compartilhamos lattes, muffins e os sonhos sonoros da noite anterior, quando mal havíamos chegado e, arrastados por canções embalando cheiros de food trucks, fomos parar em suas ruas. Era a nossa primeira noite em Austin. Olhamos para cima e nos demos conta do vento empurrando, com pressa, uma renda de nuvens a encobrir o céu claro de quarto-crescente. Como imagens em forward, mostrava-nos o passar rápido do tempo. Não temos mais 20 anos. Em Austin, todos têm 20 anos. Que assim seja. Por um final de semana, apertemos rewind e contemplemos como as árvores contemplam, voltando no tempo e escolhendo a idade que nos cai bem para o momento. Mas só por um momento. Não queremos mais os 20. O tempo voa na garupa das motos. É com ele que queremos seguir.

Dallas, abril de 2014.

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Cristina Hélcias
CRÔNICAS

Relatos de uma vida pelo mundo e pitacos de uma personal stylist .