Entrevista com a mulher que cria correntes no zap

Victor Hugo Liporage
CRÔNICAS
Published in
4 min readMay 1, 2018

“Olá, ouvintes da Rádio +Cultura. Recebemos hoje Vânia Tatiana, renomada por seus excêntricos ensaios de profundidade antropológica em aplicativos de mensagens. Bom dia, Vânia.”

“Bom dia.”

“Pois bem, conta pra gente: o que você faz?”

“Bom, meu nome é Vânia e fui chamada aqui hoje para comentar sobre minhas correntes no Whatsapp.”

“Aplicativo de mensagem.”

“Como?”

“A senhora foi chamada para comentar sobre seus ensaios em aplicativos de mensagem, certo?”

“Ah.”

“Então, senhora Vânia. A senhora é formada em Literatura? Antropologia Social? Tem algum tipo de pós graduação em Estudos Literários?”

“Na verdade, minha única relação com Letras é que minha mãe é cigana e eu larguei o ensino médio pra irmos à São Tomé das Letras.”

“Uau! Uma verdadeira exploradora de diferentes culturas.”

“Eu achei um pouco chato, não gosto muito de mato.”

“Hahaha! E não perde o bom humor. Pois bem, Vânia. Quando nossos ouvintes souberam que iríamos convidar a mulher responsável por peças literárias curiosíssimas e com grande alcance social, ficaram muito curiosos pra saber o currículo da autora.”

“Eu não sou autora, amada.”

“Ah, não?”

“Na verdade, jogo búzios e tarô. Desde o impeachment a coisa ficou muito difícil, não consegui arranjar trabalho.

“Desde o golpe contra a presidenta, sim. Grave crise político-social.”

“É. Aí perdi meu trabalho formal e decidi fazer o que todo mundo tá doido pra saber: adivinhar o futuro.”

“A senhora trabalhava formalmente como professora, bibliotecária…?”

“Amada, já falei que não sou dessas. Eu trabalhava em stand de ‘Compro Ouro’ no Centro da Cidade.”

“Ah, touché! Então é daí que vem seu apurado senso de análise das classes sociais menos abastadas, o que a proporcionou sapiência o suficiente para criar ensaios literários de tamanho alcance? Uma verdadeira Paula Coelho!”

“Aham, gosto muito de Paulo Coelho, mas não entendi muito bem a pergunta. Você quer saber como comecei a fazer corrente do zap?”

“Aplicativo de mensagens!”

“Isso. Bom, eu jogo búzios ali em Marechal Hermes… Aí sempre vem gente desesperada por causa de emprego, esposa, marido, filho, etc. Vou só observando. Também percebo que tem muito religioso…”

“Sim! A religiosidade é um tema recorrente nas correntes…”

“Como eu estava dizendo, tem muito religioso. Aliás, menina, você ia ficar surpresa com a quantidade de crente e católico-apostólico-romano que gosta de jogar um búzios e um tarôzinho…”

“Hahaha! Afiada!”

“Então, deixa eu falar. Sou fã daquelas tirinhas Smiliguido, sabe? Aquela formiguinha religiosa. Pois bem, é minha maior inspiração pra criar as mensagens.”

“Formiguinha religiosa? Quem diria, há um quê antropofágico aí! Verdadeiras peças literárias modernistas!”

“Meu neto diz que não é muito moderno, não. Ele fala que corrente é coisa de velho.”

“A juventude ainda não compreende a excentricidade do gosto das massas. Mas voltando, Vânia. Soubemos que há uma dissertação de mestrado pra sair no Departamento de Estudos Antropológicos da UFRJ e outra de doutorado no Departamento de Teologia da PUC-SP sobre seu trabalho!”

“Olha, eu acho aquela garota da UFRJ muito folgada.”

“Perdão, Vânia?”

“Folgada. Ela me liga toda madrugada pra perguntar ‘qual a moral dessa história aqui?’, ‘quantos pessoas espalharam essa corrente ali’?”

“Hahaha. É natural que a intelectualidade trabalhe nas madrugadas à base de café e muito Bourdieu!”

“Com todo o respeito, amada, essa intelectualidade aí pode trabalhar a hora que quiser desde que respeite que meu tarô fica lotado de manhã cedo e que às 6 eu tô de pé!”

“Grandes artistas acordam cedo!”

“E dormem depois da novela.”

“Agora, Vânia: assunto sério. Você também é responsável pelas mensagens transfóbicas contra Pabllo Vittar e caluniosas contra o ex-presidente Lula?”

“Olha, amada, minha neta adora esse Pabllo Vittar. Sabe todas as coreografias. No início eu até recebia umas correntizinhas dele, mas tenho uma máxima: tudo que compartilham muito fica clichê. Aí cansei.”

“Palmas, palmas!”, a locutora aplaude.

“Sobre o Lula: voto nele desde 89. Mas o PT foi longe demais. Agora só voto nulo!”

A locutora desliga seu microfone, afasta o aparelho da boca e estala os dedos em direção a um funcionário do estúdio.

“Jorge, vai cortar.”

“Ué. O que houve?”

“Desculpa, dona Vânia. Não tá funcionando.”

“Como assim? Fui grossa?”

“Digamos que a senhora não está muito alinhada com nossos propósitos no programa.”

“Mas menina! Tô respondendo todas as perguntas.”

“Dona Vânia, tem um ex-catador de lixo que virou poeta ali na sala de espera, uma uma faxineira que escreveu um livro de contos… Nós precisamos de potência nas histórias. A senhora… Bem, faltou potência.”

“Mas a senhora não pode me tirar do programa. Já avisei pra todo mundo no zap.”

“Desculpe decepcioná-la, dona Vânia.”

Vânia, desapontada, também afasta seu microfone. Bota os dedos nas têmporas, mas de repente, esbugalha os olhos.

“E se eu jogar um tarôzinho ao vivo, dona?”

A locutora, que mexia no celular, volta a prestar atenção em Vânia.

“Exótico.”

“Não, tarô.”

“Sim, eu sei que o nome é tarô. Eu disse que é ‘exótico’.”

“Ah…”

A locutora prende os cabelos e reflete. Estala os dedos pra outro funcionário.

“Júlio! Corta, não. Vamos voltar.”

--

--