Ser toda maré cheia

Ou: ser trapo, mas ter rio e beleza guardados em olhos de jabuticaba

Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS
5 min readJul 19, 2017

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Esta história poderia começar com uma nota triste da música linda tocando ao longe. Dedos negros na tecla do piano.

Mas não. Vou começá-la alguns segundos antes: uma sacola cheia de roupas velhas não se aguenta após horas de viagem e se deixa cair no chão. Pernas, centenas de pernas, tantas pernas passam para lá e para cá, o direito de ir e vir que, ali, chega a ser um dever.

Encontros e despedidas, aquela coisa que a música já diz. É claro, ela nunca ouviu falar disso. Não pensa em como as pessoas têm direito de chegar ou de ir-se embora para algum outro lugar, outra realidade. Ela ignora tudo isso. Não a sacola, mas ela, essa criatura pequena e perdida que, nesse instante, tenta recolher algumas roupas, trapinhos miúdos que usa para cobrir sua pele jovem, porém desgastada. A vida desgastando sua pele.

Agora sim: uma triste nota de piano entra em cena. Em meio ao burburinho de rodinhas, alto-falantes, pernas e mais pernas na grande rodoviária.

Para onde ela iria? Não sabe exatamente. A mãe tinha a enviado para morar com a tia, “lááááááá na grande cidade”, foi o único que disse. Isso porque já não havia mais lugar para sua boca naquela casinha tão pequena, à beira do rio eterno.

Assim, dias antes, pegou a sacola, que foi para o barco, que foi para o trator, que foi para o carrinho de mão, que foi para o ônibus, que foi para outro ônibus… que veio para o chão. O peso de sua vida estava ali, naquele monte de nada. Trapos. Um trapinho de vida. Mas ela ignora tudo isso.

Não sabe. Mas, neste momento, mada importa mais. Há algo no ar que a fisgou, como se ela fosse um daqueles peixes que se pega no rio e se come em casa.

Sente fome. Nem se lembra da última vez que colocou algo na boca, a mãe lhe preparara uma pequena boia, apenas o suficiente para que não morresse na viagem. Não morreu, mas sente fome. “A grande cidade vai te salvar, menina”, a mãe prometeu, quase em forma de oração. A mãe cheia de esperança. Tanta coisa a mãe havia dito. Tantos cuidados. Mas, no fim, era só obedecer a tia.

A mãe e seus olhos pretos, o cabelo escorrido, escorrido assim como a vida que ia lhe escoando pelas mãos — enquanto mais um filho mamava no peito da mãe, sugando o resto de energia que o corpo dela parecia reservar. Ah, mas era forte, era uma mulher admirável. É claro que a menina não fazia ideia do que significava admirável, porém sabia olhar para a mãe e sorrir. Gostava de encostar-se nela, em seu colo.

Mas ela era coisa demais para a mãe. Teve de vir morar com a tia, que era seca e não teve filho nenhum, e morava na cidade grande, que era boa. Agora, estava aqui, nesse lugar tão grande quanto a sua vila, com mais gente do que poderia pensar a sua rala imaginação. Sentia frio. Como poderia fazer tanto frio, meu Deus?, pensou rapidinho, enquanto terminava de juntar os trapos. Pegou o pedaço de papel onde a mãe anotara o telefone da tia: “liga para ela de um orelhão, qualquer coisa, ela vai te pegar na rodoviária. Espera que ela vai lá, entendeu?”. Entendeu, deveria esperar que a irmã da mãe fosse sua salvação. Agora e para o resto da vida, provavelmente.

Então, haveria de esperar. E a tia haveria de encontrá-la, não é? A tia saberia adivinhar os traços da vidinha difícil da sobrinha, que só tinha visto uma vez, quando a menina era ainda bebê, tal como o irmãozinho que agora mamava no peito quase seco da mãe, outro trapinho de gente que iria juntar trapinhos para se vestir.

Será que tinha mudado tanto desde que a tia havia ido embora, deixado a família, o rio e os peixes para trás? Acha que não, nem cresceu tanto, afinal. A tia saberia sentir seu cheiro, seguiria o rastro do seu sangue familiar, escutaria seu coração batendo de medo da grande cidade.

Agarra a sacola. Sai caminhando, desviando das pernas apressadas, arrastando o peso de sua vida atrás de si. Não sabe o que a chama, o que lhe faz querer caminhar. É um peixe capturado, vai contra a corrente forte do rio de pernas. É algo triste o que a chama, mas tão tão tão bonito. Como pode haver uma coisa tão bonita, meu Deus, pergunta. Sente o coração dar pulinhos, sensação estranha que a cidade grande causava. Então, aproxima-se de uma pequena multidão curiosa, que levanta aparelhos celulares para cima, disputando um bom lugar com uma boa visão — apesar de todos ali terem dois olhos. Coisa curiosa essa gente branca, pensa, dando um risinho. Pois é possível sentir a coisa bonita e triste até de olhos fechados.

Foi quando.

Quando parou. Atônita. O que seria aquilo? Os olhos arregalados de descoberta.

O piano de cauda negro, o pianista negro com uma camisa branca tão brilhante… Que coisa mais linda e triste, sentiu. Não poderia mais tirar seus olhinhos dali, não poderia mais sair daquele lugar, nunca antes em sua vida imaginou que pudesse existir algo que fizesse o corpo soltar água pelos olhos.

Tenta entender por que seu coraçãozinho pula tanto. É um trapinho de gente. Tem a pele queimada de sol, muito sol. Seus olhos pretos, cor de jabuticaba madura, guardam toda a beleza que há no rio que beirava sua casinha. Tão longe. Guardam a beleza do o sol nascendo naquelas distâncias, mata adentro, subindo, beijando o rio, até brilhar no céu. Ela guarda na memória de suas jabuticabas a luz que brilhava também para aquela gente, gente sua, quase esquecida pelo resto do mundo.

Mas, agora, a beleza era outra. E ela tentava capturar a beleza e a tristeza daquela coisa que os dedos longos e negros daquele homem tão sorridente soltavam no ar.

Era um trapinho de gente. Mas está chorando. Ela, com fome e com frio, tão perdida quanto uma folha de árvore na correnteza de rio, chora pela beleza de algo invisível, um barco que atravessa seus ouvidos, sua pele.

O mundo, neste instante, é esse trapinho de gente na cidade grande para ganhar a vida. Poderia continuar a história com algo mais importante, mas não. Nada mais importa do que a menina que desdonhece a realidade além-rio.

Ela descobrirá, é bem verdade. Agora, solta pequenos pensamentos, quase em oração, assim como a mãe murcha do outro lado do país. Sente falta da mãe, que era quase todo o significado de sua vida de menina do rio.

Ela: um trapinho com olhos de jabuticaba e pele de sol. Transbordando como o eterno rio que beira sua casa. O piano negro de cauda e aquela música tão triste e tão bonita, de repente, a transformam em maré cheia.

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Dedo de prosa e poesia
CRÔNICAS

Crônicas, contos, resenhas e rabiscos. Por Ana Lis Soares.