Este que vos fala

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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2 min readMay 24, 2018
Minha pessoa abomina as pessoas que falam de si em terceira pessoa. Foto: O Explorador.

Tenho pavor do sentimento de posse cultivado por boa parte de nós, seres humanos. Acredito tanto no poder da liberdade que fico espantando quando uns se sentem donos de outros. Acho estranho, retrógrado, por que não bizarro?

Deve ser por isso que meu estômago se contorce em posição fetal se ouço alguém falar de si em terceira pessoa. É um tal de “este que vos fala” daqui, um “minha pessoa discorda” de lá. A necessidade de se afirmar como dono da própria persona beira o caricato.

Tudo bem que a hipervalorização do “eu” é deprimente. Ele — no caso, o “eu” — domina um cenário de câmeras fotográficas em marcha à ré, priorizando selfies e ignorando belas paisagens. O umbigo, mesmo que sujo, precisa ganhar holofotes mundiais. Tentamos fugir desse caos narcisista e corremos o risco de entrar em outro grupo também pedante.

Falar de si em terceira pessoa é uma fantasia de brechó da igreja. Não passa da velha massagem do ego. Quando acontece, dispenso o remédio para dormir, tão grande será o sono sentido dali em diante. Uma falsa tentativa de não se dar importância, dando-se mais importância e se sentindo o mais importante entre os que se dão demasiada importância. Uma retroalimentação tão confusa e irritante quanto este parágrafo.

Minha pessoa tem vontade de revirar os olhos. Penso nas tarefas a cumprir, no caminho sem volta rumo ao cansaço mental e em estratégias infalíveis para encerrar o papo vaidoso.

Este que vos fala tem pavor de alguns personagens: fanáticos religiosos, aventureiros com inacreditáveis histórias pessoais sobre qualquer assunto e os que falam de si em terceira pessoa. O cronista dessas mal traçadas linhas tem forte receio de sofrer um infarto quando a inconveniência em forma de gente expõe seu repertório.

Tudo podia ser resumido em simples “eu”, nos poupando do exercício de falsa humildade de tão importante pessoa — sua pessoa, nunca minha pessoa.

— Nossa, que simplicidade! Precisa até falar de si em terceira pessoa. Um exemplo de humildade, não? — diriam os desavisados, segundo a imaginação daqueles que vos falam.

Eu fico bem irritado. Ou melhor: minha pessoa, este que vos fala, o escritor assinando a crônica, o filho da minha mãe que não é meu irmão, a mente pensante ocupando a caixa craniana do corpo abrigando as vísceras do meu ser…

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).