Faltou amor a Lindalva

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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4 min readAug 3, 2017
A vida de Lindalva se resumiu em amargura. Foto: A Mente Maravilhosa.

Os carros passavam pela janela do ônibus na mesma velocidade das fotos e frases vazias pela tela do meu celular. Numa rara informação relevante, a notícia: dona Morte visitou Lindalva.

Há personagens e lugares que carregam um pedaço de nossa infância. Quando partem, levam esses cacos e jogam em nosso peito a vida adulta, esse caminho sem volta. Pode ser um vizinho excêntrico, uma farmácia que entrávamos apenas pela balança de ponteiros, uma padaria com um desavisado tomando cachaça e cantando a moça do balcão.

Lindalva era um desses tipos. Levou pedaços de infância dos que viram nos anos 90 e 2000 o auge da amargura em sua triste alma.

Alma que ela tentava redimir todos os domingos ao caminhar lentamente de casa à igreja. Depois dos 80 anos, os domingos se multiplicaram em terças-feiras de pãozinho de Santo Antônio, quintas-feiras do terço e sextas-feiras para abençoar a semana que passara tão rapidamente quanto seus esporros a quem jogava bola na rua.

Quando mais novo, minha mãe justificava essa amargura de Lindalva entre uma peça de roupa e outra que pendurava no varal de casa. Dizia que ela veio do Nordeste ainda bem nova e aqui casou com um homem bem mais velho, falecido num trágico acidente, alguns anos depois de duas das suas quatro crianças partirem, vítimas de sarampo.

Dona Morte não teve piedade de Lindalva, que não perdoou o mundo por seu sofrimento.

O ônibus enchia cada vez mais e eu me atentava aos assentos reservados, pois sempre há um mal educado que finge estar dormindo.

Como Lindalva, que simulava o sono, mas da janela de casa acompanhava os movimentos da vizinhança. Condenava as mocinhas e seus namorados adolescentes, enquanto cultivou mais de 50 anos de uma viuvez casta. Depois da aposentadoria, dedicou a vida aos trajetos casa-igreja-casa, casa-banco-casa, casa-feira-casa, casa-mercado-casa. Nunca abria mão da rotina casa-amargura-casa-mágoa-casa-solidão. Era capaz de descrever a outras vizinhas toda a compra de quem voltava do mercado, como se uma visão de raio-X a fizesse enxergar por dentro das sacolas. Sabia quanto cada um ganhava, com quem saía, para onde iria. E tudo recriminava com acidez de vilã.

Viu os casamentos dos filhos escorrerem pelo ralo e condenou os estudos dos netos antes que um deles sucumbisse à vida no tráfico. Livros não eram coisa para pobres, dizia. Não passou um dia sem reclamar da vida, do mundo, da falta de Deus no coração de quem não fazia o sinal da cruz a cada dez minutos.

Ninguém era capaz de explicar tamanha amargura, exceto meu pai, sábio.

- Falta amor a Lindalva.

A rua se reunia ao redor de uma TV de tubo com comidas e bebidas em meio à final da Copa do Mundo de 2002. Ela olhava tal balbúrdia e resmungava de sua janela. Meu pai me deixou levar um pedaço de bolo depois que o Brasil se sagrou pentacampeão mundial de futebol. Ela aceitou o presente da criança, mas reclamava por darmos atenção a coisas tão desimportantes. Vivia uma tristeza incomum que se multiplicava ao ver alegria em outras faces.

Lindalva se afastou dos netos, não conheceu bisnetos, irritou médicos, trocou de igrejas quando discordou dos padres. Nunca foi capaz de enxergar a vida tão linda quanto as letras iniciais de seu nome. Ficou recolhida e solitária num mundo só seu até que o Alzheimer tomasse conta de seus dias e os herdeiros monitorassem sua vida, como ela fez com os que a rodearam em mais de seis décadas depois de seus infortúnios.

Dei sinal para descer no próximo ponto e lembrei suas proposições sobre o casamento alheio, enquanto pisava naqueles paralelepípedos rumo à missa. Quando perguntada sobre os motivos de não se casar novamente, dizia ser o adultério um pecado abominável.

Pobre Lindalva! Desperdiçou a vida e fez dela mera existência.

Para os amigos de infância, a notícia se tratava do esperado fim de uma velha ranzinza que não se dava com ninguém. Lindalva morreu sem ter vivido. Se o senhor Destino foi cruel em sua juventude, ela deve ter passado a maturidade e a velhice numa espera angustiante pela visita da dona Morte.

Meu pai devia estar certo: faltou amor e sobrou religião, faltou amor próprio e sobrou amargura, faltou amor à vida e sobrou tristeza, faltou amor e sobrou ressentimento contra o mundo.

Pobre Lindalva!

Desliguei o celular, desci do ônibus no ponto em frente a minha casa. Antes de colocar a mochila no sofá e tomar o café da tarde, brinquei com os cachorros e abracei meus pais. No meu quarto, usei o celular para despejar ternura entre amigos e amores. A vida pode ser linda, às vezes.

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).