Foi o que ele disse, de modo súbito, enquanto fazia seus afazeres do trabalho na sua baia. Pareceu ler minha mente, já que eu sempre me questionava do fato dele sempre usar os mesmos calçados, todo santo dia — e, no caso dele, são um par de crocs um tanto quanto extravagantes, dado o laranja que colore o objeto em questão.
Pouco ou quase nunca nos falávamos, sempre estávamos ocupados com nossas tarefas diárias naquele edifício comercial e, a despeito de estarmos lado a lado, não havia uma troca de palavras que fossem suficientes para serem chamadas de algo próximo a uma interação social. Cada qual em seu próprio mundo, éramos dois candidatos a ser duas retas paralelas, muito próximas uma da outra, porém nunca se encontrando.
Até que, como num episódio de Black Mirror, o universo virtual e tecnológico bateu em nossas portas e o encontro das retas paralelas aconteceu, como naquele famoso evento fake do facebook.
“Oi?”, foi a única palavra capaz de ser dita por mim naquele momento, enquanto tirava o fone de ouvido, que não emitia nenhum som.
“Eu gosto de calçados confortáveis. Por isso estou sempre usando esse negócio horrível nos meus pés”
“Ahh”, também foi a única coisa que consegui dizer diante da tréplica, além de uma risada um pouco desconfortável que claramente era uma tentativa deliberada de ser simpático — e muito provavelmente foi uma tentativa fracassada.
“É que eu sei que crocs são horríveis. Tá para existir algo cujo design foi projetado por um humano que seja tão feio quanto o crocs, e eu sei que você concorda com isso. Mas é que eu gosto muito do conforto dele, parece que, quando ando com ele, estou pisando em nuvens. E esse crocs laranja é justamente uma representação de um modo de vida meu: conforto acima de tudo. Sabe, meu caro colega de trabalho, eu posso ser um cara novo, tenho trinta e dois anos, mas cheguei num ponto da vida em que tudo que quero e preciso é de conforto, saca? Exemplo: eu nunca fui sociável, então essas convenções sociais sempre são um saco. Não gosto muito de conversar com as pessoas, desde a faculdade sempre tive dificuldade em socializar, parece um esforço homérico construir um simples diálogo com alguém, mesmo ébrio. Sofri um tanto com isso, mas percebi que sou assim e, por mais que tente, tente e tente, nunca conseguirei ser tão comunicativo. Poderia dar mais uma chance e tentar outra vez, mas preferi seguir pelo lado mais confortável: ser o que sou. As pessoas entenderiam, e elas entendem, de fato. Cada um é cada um e precisamos buscar nosso próprio conforto, acima de tudo, cê tá ligado? E, para mim, nada como o conforto de estar em casa, com a minha família, ou estar com meus amigos num lugar igualmente confortável, onde podemos conversar ou simplesmente não trocar uma palavra. Eu penso, analiso, tomo decisões em tantos momentos da minha vida, num ritmo tão absurdo, que em certos momentos eu preciso de uma pausa, do meu próprio momento de conforto. E até mesmo para tomar tais decisões, preciso também estar confortável. O crocs, essa camiseta um número maior, a calça tactel, me permitem isso, pensar e analisar o mundo de forma confortável.”
Internamente, eu estava perplexo. O cara que trabalhava há meses ao meu lado, com o qual nunca tive sequer um diálogo, representa um modelo de vida e uma visão de mundo os quais tenho tentado correr atrás há tempos. Se ele atingiu um nível de conforto, eu sou alguém ainda muito desconfortável, com praticamente tudo nessa vida. E, além disso, avesso a interações sociais, igualmente a mim.
“Claro, isso não quer dizer que eu esteja confortável com tudo”, ponderou como se lesse minha mente, “mas, na medida do possível, tento levar essa crocs way of life, mantendo um nível de conforto em alguns aspectos da minha vida.”
“Cara, ainda preciso processar tudo que você disse, mas posso adiantar que concordo plenamente contigo, apesar da minha execução não ser como seu discurso. E tenho algumas perguntas. Primeiro, por que você veio falar isso para mim, do nada? Eu sinto que a sua linha de raciocínio contempla um momento particular da minha vida e justamente na nossa primeira troca de palavras consistente, você apresenta algo que venho pensado com frequência. E, segundo, se você me permite perguntar, por que justamente a cor laranja?”
“Bom, posso começar pela segunda pergunta? Sim, posso. É porque, no tamanho do meu pé, era a única cor que estava disponível na loja.”
“Ah, justo.”
“E, sobre a primeira pergunta: se haverá até mesmo o Encontro Nacional das Retas Paralelas, por que não podíamos ter nos encontrado nessa estrada da vida?”
“Filho duma égua, esse cara lê minha mente”, foi o que pensei, enquanto ele colocava seu fone de ouvido e voltava sua atenção para a atividade interrompida antes da conversa. Primeiro para o celular, de onde acertou no cronômetro mais vinte e cinco minutos — o famosíssimo pomodoro — e depois na tela do computador, realizando suas tarefas no trabalho.