Lá e de volta outra vez

Anderson Carvalho
CRÔNICAS
Published in
4 min readJun 21, 2018
Photo by Lauren Peng on Unsplash

Por fim acordo. Acordo para um gosto metálico na boca, acordo para o estômago vazio e a bexiga cheia. Pouco a pouco reconheço os sons da manhã, reconheço meu corpo deitado em minha cama. Abro os olhos e posso ter certeza, é o mesmo quarto de outras manhãs. A mesma penumbra interrompida pelos raios do sol que se metem pelos buracos da persiana horizontal. É outra mas é a mesma manhã, é outro dia e é a mesma vida.

Então, no espelho do banheiro é ontem. O rosto cansado, os olhos vermelhos, a urina de um amarelo vivo são pedaços de ontem que ficaram para hoje. Resquícios. Consequências de ontem. Chego mais perto. Encaro aqueles olhos no espelho, um tom qualquer de castanho e pupilas negras. O rosto está sorrindo, debochando de olhos que se olham tão seriamente no espelho. Fundo nas pupilas é tudo seriedade, silêncio e imensidão. Estou em algum lugar dentro das pupilas, essa outra dimensão. Lá no fundo carrego uma promessa. Uma promessa secreta, um promessa minha. Uma promessa que fiz antes de ontem mas que ontem estava esquecida. Ontem fiz tudo que me leva em outra direção. Quem dera ontem fosse hoje.

Mas ontem foi ontem e ontem tudo que fiz foi esquecer hoje e nem pensar em amanhã. O amanhã depende do hoje, o ontem é livre. Quando o amanhã é objeto então o hoje é dividido em hábitos. Como chegar lá da maneira que espero chegar se hoje não faço o que preciso fazer? Impossível. Não, impossível é demais, mas seria necessário colocar tudo nas mãos da sorte. E a sorte todos sabem como é. A única maneira de tomar a vida do acaso — ou ter a sensação disso, de fato o acaso é soberano — é com os hábitos. Hábitos saudáveis, produtivos, eficazes e eficientes. Em essência escolher como é a vida que quero viver e passar a viver ela todos os dias. Requer muita força e muita obstinação. Até consigo. Mas de tempos em tempos é ontem. Ontem tudo foi por água abaixo e repeti tudo aquilo que tento me afastar. Todos os hábitos que abandono são os que me encontro ontem. Um encontro inevitável. Como se manter no caminho escolhido se não há nenhuma rosa dos ventos para dizer que o Norte é para lá? Como manter a vida nos trilhos se no máximo tenho algumas pegadas e um mapa feito em casa para seguir. Vou experimentando. Ontem foram experiências, experiências que já conheço o resultado. Ontem não me importei, ontem fui mesmo assim. Hoje acordei com esse vazio, esse sentimento esquisito que fica entre o arrependimento e a vergonha, essa coisa sem nome que silencia tudo e até parece alterar os mecanismos da gravidade. Hoje foi difícil acordar, hoje acordei como se fosse ontem, um ontem que vivi várias vezes e não quero mais viver, um hoje que acordei diversas vezes e não tenho mais interesse.

O que quero mesmo é uma certeza — mas não essa certeza que está conosco desde o dia zero, uma outra, uma menos avassaladora. Essa certeza vem de uma fonte que ainda não encontrei. A nascente do Nilo é o que preciso encontrar e seguir por ele durante toda a minha vida até desaguar no mar e me tornar oceano. Não adianta planejar, estudar o relevo, as épocas de cheia e de seca e ter todo o sistema de irrigação construído se não encontro a nascente, se não encontro o rio. Quero é a certeza do abstrato, a inocência da confiança. A fé nas lógicas do acaso, nos fluxos da vida. Preciso dessa fé que não encontro. Procuro por ela pelo mundo, procuro por ela em mim mesmo e de tanto procurar me esvazio e murcho em desilusões. De tanto lutar não me entrego. Resisto quando sei que aceitar seria suficiente. Sei toda a teoria e emperro na prática. Quero a Fé, a Fé em qualquer coisa, aquela que move montanhas. E ela que me falta. E a Fé me falta porque não a aceito, porque luto. Lutar foi tudo que sempre fiz. Luto pelos hábitos que escolhi, luto pela vida que quero, luto pelo meu jeito. Não consigo aceitar, não consigo me render. Aprendi a lutar e agora luto. Simples assim. Tivesse aprendido a amar e tudo seria diferente.

Afinal acordo e é um novo dia mas é o mesmo dia. São os dias uns após os outros numa dança, essa coreografia cósmica é tudo que tenho. Ontem declarei falência intelectual e emocional, hoje trabalho e faço o melhor que posso, amanhã eu nem sei. O amanhã não me pertence. Pertence a aquilo que não tem nome. Que as vezes chamo de Futuro, mas o futuro só faz sentido em oposição ao passado e ao presente, mas não há razão para chamar um de futuro e outro de passado, são todos a mesma coisa. Essa coisa que não tem nome. Essa coisa que é o ponto de chegada de tudo que penso e faço, essa coisa que existe mas que não entendo, essa coisa que sinto mas que não acredito. Invoco furacões e tempestades para mudar tudo de lugar atrás de alguma ordem e o resultado é sempre um sorriso leve, quase irônico. Um sorriso que diz que é assim mesmo, que não há motivo para pânico, que tudo é o que é.

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