Longe das sombras
Uma pulga pousou na minha orelha antes de dormir. Por onde andava Nina?
Temos uma amizade bacana, antiga, de confiança. Mas tanto tempo sem contato. Tanto tempo não, uns bons três ou quatro meses. Coincidentemente (ou não?) começamos a nos distanciar quando ela oficializou o namoro com o Daniel, sempre sério. Ele não ria das piadas de gente folgada como eu, dizia. Sempre de cara amarrada.
Bobagem, a Nina não. Ela ri demais. A gente sempre saiu pra tomar uma cerveja, conversar sobre a vida, trabalho e relacionamentos. Mais de dez anos de amizade, provavelmente. Ela não ia se render à posse. Ela nunca acreditou em posse. De seres humanos, não. Devia ter acontecido algo.
Olhei sua foto no WhatsApp e nela o Daniel praticamente a agarrava pelo pescoço. Não, a Nina não. Fui ver o Facebook e… ela excluiu o Facebook. Por que, Nina? Agora entendi bem o motivo de nunca mais ter visto seus comentários irônicos em minhas fotos esbanjando falsa felicidade. Ela não estava mais lá e eu nem percebi, sou desleixado demais.
Todo mundo tem suas crises existenciais e a Nina sempre foi uma entusiasta da terapia quando eu ainda achava isso coisa de gente doida. Eis que a barra de pesquisa mostra que ela não apagou seu perfil no Facebook: ela simplesmente ME excluiu.
Que mal te fiz, Nina? Fui ver os amigos em comum, dois ou três. Eram quase 100. Tentei as fotos: bloqueadas. Que bicho te mordeu, Nina?
Resolvi chamar a Camila, sua irmã mais nova e dispersa. Se passassem por algum problema sério, poderiam contar comigo como desde os bons tempos, oras.
Pelo visto, Daniel não gosta muito de mim. E de todos os homens da Terra que ousem respirar do mesmo oxigênio que a sua princesa. Não acredito em monarquias, ele sim. E se incomodou com os comentários nas fotos, os colegas de firma, os velhos amigos, os antigos costumes, as crenças de antes e as consequências de um depois que nunca chegaria sem suas condições.
- A Nina continua a mesma: divertida, pra cima, cheia de ideias e papos bacanas como sempre. Até ele chegar para cortar suas asas. Aí não alça voo, fica presa.
Ela deve avisar com quem sai, aonde vai e com quem fala. Ele pede espaço para jogar bola na terça à noite, não gosta de ser sufocado e grita. Camila não se conforma.
O ser humano é um bicho muito estranho. Se pensa possuir outro ser humano, medonho. Quando acredita ser possuído por outro ser humano, dá pena.
- Tomara que ela perceba logo a merda que está fazendo, Camila. Diga que não mudei o número do telefone, mas que vou dar um puta sermão nela.
- Nem fala. O Daniel tem ciúmes até da sombra. A Terceira Guerra Mundial não virá do Trump, mas do Daniel. É só ela passar meia hora sem mandar uma mensagem e pronto: ele lança mísseis, granadas. É tiro pra todo lado.
Com tanta liberdade por aí, há quem prefira certas prisões a céu aberto. Nana não, Nina.