Macacos me mordam

Leandro Marçal
CRÔNICAS
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2 min readJan 11, 2018
Dublado não, por favor! Foto: Super Cinema Up

Sou do (cada vez mais raro) time dos sincericidas. Aquela gente estranha e chata, que se arrepende de falar antes mesmo de abrir a boca, mas não consegue se conter, nem finge concordar. Chego a perder o sono quando me deparo encenando uma dessas mentiras diárias.

Por isso fujo de filmes dublados. Me sinto enganado. A atuação pode ser digna de prêmios em festivais internacionais e Oscar. Mas há uma voz falando por cima, no meu idioma, com uma linguagem meio artificial.

No dia a dia, nunca ouvi alguém proferir um “macacos me mordam!”, “vai se ferrar!” ou “seu paspalhão duma figa!” (!!!) em momentos de tensão. Um “vai dar merda” é muito mais confiável que “uma turminha da pesada aprontando altas confusões do jeito que o diabo gosta”. Mesmo a história mais complexa e desgraçadora de mentes ganha ares de infantil e logo me vejo comendo bolinhos de chuva numa tarde nublada, com cobertor em frente à TV, depois de voltar da escola.

É tudo muito estranho: parece existir uma voz padrão, a mesma de um vilão de desenho animado, falando por cima de mim quando concordo com quem não vejo há tempos.

- Claro, a gente vai se falando. Me chama pra combinar um rolê com a galera das antigas.

Nos dias em que sou obrigado a rir da piada sem graça do meu chefe, a gargalhada é a mesma de um super-herói sem disfarces. Se na volta para casa há um religioso distribuindo panfletos de suas palavras sagradas interrompendo meus passos apressados, um vilão me dubla, concordando com tudo que é dito.

Filme legendado é bem melhor. Já aprendi umas palavras de outros idiomas me atentando àquelas letrinhas amarelas — porque as brancas são ruins e às vezes não dá para enxergar nada — e não se perde o clima do original. É como sentir a atmosfera de uma viagem, enquanto as vozes sobrepostas não passam de cartões postais.

Tudo bem que as dublagens criaram um vínculo natural com desenhos de infância. Não podia ser diferente. Mas não me conformo com o cinema da minha rua só me oferecer filmes sem letrinhas abaixo da tela — nem mesmo as brancas, ruins, porque às vezes não dá para enxergar nada.

Nos dias em que sou taxado de chato, ranzinza e metódico em meio a mais um sincericídio, dou sorte por não haver letras à minha frente expondo toda minha irritação. Respiro fundo e ouço uma voz metálica ecoando: macacos me mordam!

Texto publicado na coluna Cinefilia Crônica, no CinemAqui

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Leandro Marçal
CRÔNICAS

Um escritor careca e ansioso. Autor de “De Letra: o futebol é só um detalhe” e “No caminho do nada”. Cronista no Tirei da Gaveta (www.tireidagaveta.com.br).